sábado, 22 de janeiro de 2011

“Mãe, eu sou um pouquinho mulher!”


Quero escrever hoje um texto sobre a Giulia, minha primeira filha. Quero porque quero. Quero porque é justo que escreva, neste tempo em que estou escrevendo tanto. Ela, certamente, é um dos meus belos ‘textos’ na vida, representa uma conquista imensa, a derrubada de milhares de barreiras internas, na busca da conquista de um sonho. Eu já contei isso em outro texto (Eu sou Mãe Malu-a), mas não falei dela o suficiente. Nunca vai ser o suficiente, mas eu vou tentar minimizar isso, com estes escritos de hoje.

Giulia é minha primeira filha. Eu a adotei em 1996, logo que ela nasceu. Desde então, tenho vivido com ela momentos mágicos, plenos de felicidade materna, de cumplicidade imensa. Tenho certeza que fazemos uma história maravilhosa de um vínculo mãe e filha, que nem todas as pessoas conseguem, mesmo com filhas e filhos biológicos. Eu lembro cada detalhe, da espera ao momento de encontro com ela. Quando a busquei no hospital, por exemplo, lembro do estremecimento no momento em que ela me foi entregue, a saída do hospital, o medo que alguém me parasse e me dissesse que eu não poderia trazê-la; depois, a chegada em casa, o dia a dia, o quanto que eu me mobilizei e me envolvi com ela.

É interessante que, com filho adotivo, também acontecem algumas coisas inexplicáveis. Por exemplo, nos primeiros tempos, eu sentia o que ela sentia. Ela tinha diarreia, eu tinha diarreia.
Ela dormia, eu tinha que dormir. Ela chorava de cólica, a barriga ficava meio dura e eu começava a sentir cólica também. Fiquei meio que hipnotizada, meio bêbada de felicidade por ter conseguido, enfim, ter a minha filha ao meu lado. Assim foi cada dia, foi cada coisa que vivemos. Hoje, Giulia está com 14 anos. É uma adolescente, uma menina moça, como diziam quando eu era criança. É lindo vê-la crescendo. Ontem, entrei no seu quarto e me assustei com o fato de que ela está do tamanho de uma adulta. Tudo passa tão rápido na vida. Depois de um tempo, passa mais.

Giulia é uma filha exemplar. Hum, não sei de deveria estar escrevendo isso. Deveria, sei que ela vai ler, mas sei também que nosso cotidiano, nossa convivência é de cumplicidade, o que lhe dá a clara noção de que não a idealizo. O tempo todo vou tentando orientar aqui e ali, para ajudá-la a se preparar para as situações de maior autonomia. Temos nossos entreveros de cotidiano de mãe e filha, diferenças no tempo, de geração a geração. Ai, o lugar de mãe é o lugar da adulta-adulta, de supervisão da vida, de planejamento, de orientação, de tentar projetar o futuro.... não é nada fácil, mas quando se está do lado de lá aquele parece ser o mais complicado.

Fico então me lembrando do conceito de espelho, do Jacques Lacan, que venho trabalhando há mais de 20 anos. Com a Giulia, vivi muitas fases de espelhamento e fui me dando conta o que isso, verdadeiramente, significa. Tem sido tudo emocionante. Por exemplo, eu sempre dizia para os alunos de Comunicação e Psicologia que, nos primeiros tempos, o encontro de olhares entre mãe e filho é forte, intenso, é espelho, mas que o bebê não tem consciência do que está acontecendo. O momento vai criando um substrato de informações no inconsciente, informações que vão dar significado para uma série de situações da vida do sujeito, mas não é porque a criança tenha consciência do que está acontecendo. Mesmo a mãe, pelo embevecimento da cena, tantas vezes perde um pouco o senso, a racionalidade. Ali, no vínculo mágico, pleno, parece que tudo é possível.

Então, para exemplificar, eu sempre dizia que, quando a criança dá os primeiros sorrisos para a mãe, ela não está sorrindo. Ela está apenas imitando os movimentos faciais da mãe, que é o que consegue fazer. Isso não é um sorriso consciente, desses que a criança daria se pensasse: “Ah.. essa é minha mãe querida, eu gosto dela, vou sorrir”. Não. Não é por isso que esboça o sorriso. É imitação, espelhamento puro. O problema é quem diz isso para as mães que, loucas, se enchem de razão e felicidade, quando olham a criança e afirmam, do alto de sua autoridade materna: “Sorriu pra mim. Ela sorriu pra mim!”. Bem, então, imaginem o que eu senti a primeira vez que a Giulia ‘sorriu pra mim’. Sim, porque embora me lembrasse da teoria, eu mandei o Lacan às favas, quando a minha primeira filha esboçou o primeiro sorriso. “Eu sei, ela sorriu pra mim!”, afirmava internamente com convicção, mesmo sabendo racionalmente que não era. Ficava imaginando meus alunos olhando a cena. Eles, sim, sorririam pra mim e provavelmente perguntariam, internamente, onde foi parar toda aquela teoria.

A cena é emblemática, para a vida de qualquer um. Com a Giulia – e com os outros também – fui entendendo o que é, mesmo, de fato, conviver com um espelho. Ir se vendo no outro e se moldando, tentando se ajustar, tentando oferecer a melhor imagem. Quando me separei do pai da Giulia, depois de um casamento de muitos anos, eu pensava muito que queria que os meus filhos me vissem com a imagem de uma mulher que lutou pra ser feliz, que enfrentou as dificuldades, pra não se acomodar ao sofrimento, pra não aceitar qualquer coisa, por conveniência. Preocupava-me muito, em certo sentido, de modo especial, com as meninas: “Que imagem de mulher elas vão ter? Que imagem sobre o amor elas vão ter, tendo a mim como espelho?” Eu me preocupo com isso até hoje. Estou o tempo todo tentando acertar, tentando ser uma boa mãe, um bom espelho-Mulher, que orienta, que demonstra, vivendo, que a vida vale a pena, que o amor vale a pena, que é preciso critério nas nossas escolhas, paciência porque as coisas não são fáceis, cumplicidade e aceitação do Outro. É preciso também o fortalecimento de ‘si mesma’, para conseguir viver os revezes do amor, porque ‘nem tudo são flores’. Há que aprender a conviver e, em qualquer tempo, acreditar que o substrato amoroso, aquele que nos faz vibrar de alegria ao ver o outro, pode nos ajudar a ajustar os detalhes, a ceder e a encaixar a existência na existência do outro, e que isso é ‘o melhor’ da vida.

Lembro de um dia, a Giulia tinha três anos. Estávamos juntas, sozinhas, quando, no meio da conversa, ela me olhou e me disse: “Mãe, eu sou um pouquinho mulher, né?”. Eu respondi afirmativamente, emocionada pela manifestação de consciência de que ela estava crescendo, semelhante a mim, o desencadeamento da construção do ‘ser feminino’ nela, a partir do nosso encontro. É uma graça a nossa semelhança, em tantos aspectos. Minha Giulia é meu espelho, literalmente. Com dois anos, levei-a para a Itália, pela primeira vez. As pessoas me paravam na rua, para comentar a semelhança física. Ainda hoje, chama a atenção o quanto ela se parece comigo. Isso sem falar nas semelhanças do jeito de ser. Bem, essas, então, nem se fala. Isso chega ao ponto de, em algumas situações, ela se comparar a mim – o que me deixa furiosa – e, quando vou repreendê-la, ela mesma dispara a frase: “Está se comparando a mim?”. Putz, como é difícil explicar que lugar de mãe é lugar de mãe...como é difícil entender isso também.

Mas acho que a fala mais marcante da Giulia, para mim, foi dita em uma noite em que eu a fazia dormir. Sentada ao lado de sua cama, acompanhava aquele momento em que o sono começava a chegar. Ele abriu os olhos e me perguntou: “Mãe, você sabe porque eu não fui ser filha da mulher da barriga aquela que eu nasci?”. Eu respondi, perguntando: “Por que, filha?”. Ela então, disse: “Eu não pedi para o Pai do Céu para ser filha dela. Eu pedi para ser sua filha!”. Bem, uma frase como essa, dita por uma criança da gente, vale a vida inteira.

Hoje Giulia é um pouco mais Mulher. Uma menina moça. Uma adolescente típica. Apaixonada pela dança, pelo “Buteco de Dança”, pelo Grupo Gaia, pelos Beatles e por suas amigas e amigos. Já perdi as contas de quantas vezes quase inundei teatros, emocionada com as apresentações de dança em que ela participou. Giulia dança muuuuuiiittooo. Ela já tem sua tribo e percebo que é bastante querida entre seus pares. Vejo com alegria que o tempo a está fazendo cada vez mais autônoma, feliz e segura. Até porque, ela sabe, que o que nos une é um amor pra vida inteira, é algo que supera qualquer desentendimento cotidiano, qualquer diferença. Sabe que, em qualquer tempo, pode contar comigo e que vou procurar, sempre, ser seu porto seguro, no que me é permitido, nessa minha condição de mãe imperfeita, mas plenamente feliz por ser mãe dela.

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