domingo, 11 de novembro de 2012

Leoa Malu e as “batatinhas quando nascem”....

Maria Luiza: No que está pensando, Malu?

Malu: Nas batatinhas...

Maria Luiza: Nas batatinhas?

Malu: Sim, nas ‘batatinhas quando nascem, que se esparramam pelo chão’.

Maria Luiza: Você é doida, mesmo. Estou convencida.

Malu: Ah, tá. As pessoas passam gerações ensinando pras meninas que as batatinhas quando nascem se esparramam pelo chão, como se isso fosse uma coisa normal e eu é que sou doida?

Maria Luiza: Tô dizendo. Mas o que tem de errado, criatura? E por que isso te veio à cabeça, neste momento?

Malu: Olha, se as batatinhas, que são as batatinhas, que deveriam se dar o respeito... quando nascem, já se esparramam pelo chão, porque as menininhas, quando dormem deveriam pôr a mão no coração, apenas?

Maria Luiza: Mas olha que coisa doida! Isso é o texto de um poema infantil.

Malu: Sim, sei, poema infantil. Sempre pensei isso, mas agora, pensando bem... fico me lembrando tempos e tempos declamando isso, na presença da minha avó, da minha nonna e ninguém me dizendo nada. Só riam...

Maria Luiza: Sorriam, você quer dizer. As pessoas sorriem, quando as meninas declamam poema, pela graça da situação.

Malu: Mas que graça!? Uma pobre de uma menina, submetida a um poema desses? Isso é uma mega contradição e já a apresentação de um contexto de dominação dos seres femininos que, mesmo diante das batatinhas (que quando nascem se esparramam pelo chão!) devem se limitar a pôr a mão no coração. Ah, pelo amor de Deus! Como a senhora não percebe?

Maria Luiza: Criatura, é um poema inocente. Apenas um jogo de palavras, como todo poema. Neste caso, um singelo poema infantil feminino.

Malu: Sei. Não existe isso. Não existe poema inocente. O poema é um texto com intensidades abstratas que tendem a contagiar o sujeito com sua alma. Ninguém declama um poema de qualquer maneira. O poema entra na gente. No momento da declamação, incorporamos sua alma, tomamos o poema pra nós, como se nosso fosse. Lembra a quantidade de vezes que declamei “José”, do Drummond? Naquele momento, “José” era meu. Era eu quem o questionava, provocando-o a dar explicações para si mesmo e para nós. “E agora, José?”. Esta poesia esteve em mim a vida inteira e brotou nas mais diversas situações, provocando a minha existência, minha reflexão: “Você que é sem nome, que zomba dos outros, você que faz versos, que ama, protesta?...”. Lembra? Até meus filhos amam “José!”. Agoooraaaa: “Batatinha, quando nasce, se esparrama pelo chão. Menininha, quando dorme, põe a mão no coração”, é uma sacanagem.

Maria Luiza: Sacanagem?! Olha o que você está dizendo, quer dizer, ouve o que você está dizendo? Quer dizer, como o texto está escrito, olha o que você está dizendo? Bah. Não sei nem mais o que dizer. Você consegue me surpreender, com as suas loucuras.

Malu: Tá, e das batatinhas a senhora não fala nada? Adora falar das minhas loucuras, mas não fala nada das batatinhas, que, recém-nascidas, já se espalham pelo chão. Veja como a senhora me persegue. Eu me espalhei pelo mundo. Certo. Namorei muito. Certo, ainda namoro. É um dos meus ofícios preferidos, da minha natureza italiana. Mas... como poderia ser diferente, se a sou de uma geração que foi obrigada a declarar aos quatro ventos, a quem quisesse ouvir... ainda na voz frágil infantil feminina que ‘as batatinhas...’, bem, a senhora sabe, não preciso mais ficar repetindo. Se elas, lembram, as batatinhas, se espalham pelo chão no momento do nascimento, não me venham cobrar recato, bom comportamento. Até porque só me espalho por lugares selecionados, só me espalhei nessa vida com seres especiais. Que ninguém me cobre nada!

Maria Luiza: Meu Deus! Eu fico te ouvindo e pensando em qual momento você vai me dizer: “Tudo bem, estou brincando!”, mas, nada, você segue nesse discurso desvairado, enlouquecido, fazendo uma espécie de ‘ode contra as batatinhas’.

Malu: A senhora não entende. É um questionamento existencial. Sim, do universo feminino que foi transmitido para a minha geração, assim, em supostos poemas inocentes e recomendações de comportamento recatado. Ah. Mas com a senhora não adianta discutir. Aposto que concorda com as batatinhas.... Ah..vá plantar batatas, então . Me cansei.

Maria Luiza: A propósito, agora você vai se chatear comigo. O correto é:

"Batatinha quando nasce,
Espalha ramas pelo chão
Menininha quando dorme
Põe a mão no coração"

Então, observe, as batatinhas quando nascem, espalham ramas pelo chão, o que é da sua natureza, são batatas.

Malu: Então, quer dizer que passei a vida inteira, vida de menina, bem explicado, falando o poema errado?

Maria Luiza: Foi.

Malu: Ufa, se declamei o poema errado, o que fiz de errado nessa vida, está perdoado. Sim, porque se as batatinhas, quando nascem espalham ramas pelo chão e a senhora diz que não há nada de errado nisso, porque é da natureza delas...também não há nada de errado em mim... só fiz nessa vida de Meu Deus as coisas da ‘minha natureza’.

Maria Luiza: Você não tem jeito... risos.






sábado, 10 de novembro de 2012

Ainda “stamos em pleno mar”...


E assim, a vida vai mudando de rumo, de novo, como uma espécie de rio que vai procurando o mar, eu diria, ‘a-mar’. Vai tergiversando, sinuosamente desviando dos obstáculos, tecendo o próprio rumo, enquanto provoca desassossegos tantos em quem o vê passar. Incontido e obstinado, o rio esse vai deixando ‘passados’ no caminho, vai se embora. Tem que ser. São boas as lembranças, as risadas, as conversas. Ah.. as conversas, a amoramizade é mesmo um espetáculo do relacionamento! Mas tudo tem um tempo, às vezes um dia, uma semana, meses, anos.. uma ou algumas vidas.

Conversar, ‘ versar com’ gente de bem-querer-bem, com amores amigos, saber da vida, rir junto, às vezes, mas só às vezes, chorar junto também, que ninguém é de ferro. Eu não sou, embora tenha sido forjada de um tipo de matéria forte, que me faz sempre ir em frente, avançar... tentar... se não conseguir desviar o rumo, voltar... ir embora.

Na semana cheia de sobressaltos e desafios... a frase que me veio é...depois de tanta tempestade, não é qualquer chuvisco que me molha. A semana foi de chuvaradas e mares bravios. Em compensação, vejo que fiz laços bons, renovei a convicção de que, se alguma coisa nos ajuda, nesse tempo de Meu Deus... é a condição de ‘estar junto’, do modo possível, sem modelo nem dogma, apenas e principalmente pelos fluxos intensos de afetos de bem-querer. Eu verdadeiramente conheci bons navegadores na vida. Não estou sozinha na travessia.

Na loucura do tsunami de tarefas, lembrei da minha avó cerzindo roupas... da nonna costurando meias...pensei nos curativos de feridas , feitos com carinho, ao mesmo tempo em que a voz segura de alguém que gostamos vai cuidando... vai curando a dor, o machucado. Hoje sou eu a ‘costureira de sentimentos’. Eu é que estou chamada a ‘me tecer’, reconhecer e autopoieticamente me reinventar todos os dias. Eu é que também tive que aprender a ter paciência comigo...

Eu também tenho a doce tarefa de acolher gentes no meu abraço, pessoas que precisam e se permitem viver esse aconchego, acolhimento terno de quem se preocupa, de quem se preparou para ‘sobreviver na selva’. É isso. A tarefa é a da sobrevivência na selva caosmótica desses tempos de mais desafetos que afetos explícitos. “Stamos em pleno mar”, disse o poeta Castro Alves, no clássico Navio Negreiro. Há muito tempo eu penso isso: agora sobre escravos do quê mesmo? As respostas possíveis são diversificadas e, por falar nisso, agora eu vou dormir.



O Navio Negreiro

(Tragédia no mar)


'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço

Brinca o luar — dourada borboleta;

E as vagas após ele correm... cansam

Como turba de infantes inquieta.


'Stamos em pleno mar... Do firmamento

Os astros saltam como espumas de ouro...

O mar em troca acende as ardentias,

— Constelações do líquido tesouro...


'Stamos em pleno mar... Dois infinitos

Ali se estreitam num abraço insano,

Azuis, dourados, plácidos, sublimes...

Qual dos dous é o céu? qual o oceano?...


'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas

Ao quente arfar das virações marinhas,

Veleiro brigue corre à flor dos mares,

Como roçam na vaga as andorinhas...


Donde vem? onde vai? Das naus errantes

Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?

Neste saara os corcéis o pó levantam,

Galopam, voam, mas não deixam traço.


Bem feliz quem ali pode nest'hora

Sentir deste painel a majestade!

Embaixo — o mar em cima — o firmamento...

E no mar e no céu — a imensidade!