sábado, 25 de março de 2017

‘Encontro-abraço’ e a palavra!




Eu trabalho com a palavra. Em grande parte do tempo, meu trabalho, minha vida, envolve o trato com as palavras. As palavras e o pensamento. Falo, escrevo, reviso textos, analiso falas, converso com as pessoas, nas mais diversas situações, e penso, reflito, procuro entender... Todos os dias, dedico-me a aprimorar a lida com as palavras, a ajudar as pessoas a se expressarem, oralmente e por escrito. Há muitos anos, estou voltada a ajudar as pessoas a se autorizarem a serem autores. Esse é um dos meus sustentos existenciais. Inscre’ver-me’ e ajudar outros a se inscre’verem-se’!
Eu também penso muito na vida e nas palavras. Penso sempre nas palavras que disse, que escrevi e, claro, nas palavras que li e que ouvi. Fico, às vezes, refletindo sobre a composição das palavras, com essa misturas de sons e, no caso escrito, letras, que vão se juntando, meio que se entrelaçando e que, depois disso, produzem sentido para os iniciados, para aqueles que aprenderam os traços básicos da significação, da palavra falada ou escrita em determinada língua.

Se formos pensar bem, é sempre uma espécie de mágica, que eu escreva uma palavra como ‘flor’ e o meu leitor imagine uma flor. Uma mágica da relação, do processo de aproximação entre os seres que vão compartilhando experiências de significação, até a mágica situação de alguém, como eu, escrever ‘flor’ e outra pessoa imaginar ‘flor’. Ainda que haja variações entre a flor proferida, dita, escrita e a flor imaginada, haverá confluência, encontro, em termos de significação, e o ser leitor receberá do escritor traços básicos de flor e, por isso, também, a comunicação, o encontro complexo de seres em significação, florescerá! Sim, mágica!

Também penso muito na quantidade de palavras circulantes contemporaneamente, que não têm alma. Palavras desalmadas, sem substrato de significação. Por alguma aberração da natureza humana e das relações, muitas pessoas desenvolveram uma falha do processo mágico e produzem palavras sem substância significacional. Quer dizer, as palavras são ditas, escritas, as pessoas que as ouvem ou leem tendem a produzir interpretações, guiadas pela lógica inerente à construção  da palavra, e depois, deparam-se com abismos existenciais ou relacionais. Algo se interrompe na mágica da palavra que existiu. Seria algo da ordem da ‘traição das palavras’. As palavras traem a significação da cena, porque não tinham substrato significacional suficiente que as mantivessem como ‘palavras ditas’ (ou escritas!).

Então, tantas vezes, paramos, olhamos para trás e pensamos: “Mas e o que foi dito? E as palavras tantas ditas, trocadas? E as combinações feitas?”. Surge, então, um natural estranhamento, porque, no momento da enunciação da palavra proferida, tudo parecia tão verdadeiro: o momento, o som das palavras, o aninhamento dos sons e, depois, das palavras, elas mesmas, aninhadas em frases. Tudo parecia fazer um sentido alinhado com cenário, personagens, enredo, energias. Por isso, talvez, seja tão estranho depararmo-nos com o despenhadeiro de sentidos... descobrir que, apesar de cena ser verdadeira, a profunda intensidade de significação da palavra não era. Desfez-se em nada, como se fosse uma cena de novela, que apesar da aparência de verdade, rompe-se drasticamente, no momento em que alguém grita: “Corta”.

Talvez seja um pouco esse o motivo! Inebriadas com o envolvimento das produções audiovisuais e a midiatização das relações, as pessoas talvez tenham se acostumado com o fato de que a cena não é a cena vivida, mas a cena representada. A cena criada para gerar tal envolvimento emocionado e produzir tais resultados, segundo os interesses do roteirista e diretor. Assim, tantas vezes, me pego perguntando: “Quem escreveu essa cena? Que texto é esse que aparenta tanta verdade e que, depois, se mostra tão sem significado, na continuidade dos acontecimentos?”.


Difíceis tempos de esvaziamento das palavras. Ainda mais para mim, intensa e amorosa por natureza, com as pessoas, com a vida, com as palavras. Cada palavra, para mim, é uma oração à vida. Carrega minha singela e intensa verdade. Nas minhas palavras, acredite, você vai encontrar meu corpo, minha alma, meu espírito, minha transposição em ser intenso, em verdade, que permanece em coerência à cena da palavra proferida. Quem recebe meu texto, em alguma circunstância da vida, me tem, de alguma forma, e para sempre, na minha melhor forma possível, daquele momento. Em cada letra ou ínfimo som produzido, estou eu mesma inscrita, entregue, aninhada, buscando repetir a mágica do encontro com o outro, encontro-abraço! Encontro-abraço-comunicação!

domingo, 12 de março de 2017

Sob o rugir das tempestades

Acordo em Porto Alegre, ouvindo rajadas de vento, chuva forte, trovões que aliam a relâmpagos. Tempo turbulento, pensei. Tempos turbulentos, renovei o pensamento. Muita coisa acontecendo, nesses tempos, muita coisa inacreditável. Desafios cotidianos, no sentido de levantar e seguir adiante, sem pestanejar, sem melodramatizar, sem reclamar nem nada. Só levantar, respirar profundamente e seguir.

Sinto-me, às vezes, peregrina, viajante nessa ‘longa estrada da vida’, para lembrar a música aquela. Apesar da condição de força, que fui adquirindo com o tempo, algumas coisas me doem mais, eu sinto mais, eu sinto muito, literalmente. Inspirada nos treinos de karatê, quando isso acontece, recolho-me, volto pra ‘base’, firmo o eixo de mim mesma, respiro e me preparo para o que vier. Atenta, ali, aqui, doendo mesmo, eu sei que a dor faz parte e que o mais importante é serenidade e estratégia, para acionar energia e força, orientada pelos princípios de vida que me regem: amorosidade e bem-querer-bem, sempre! Eu tenho uma matriz de força potente, forjada ao longo dos anos, na dureza, no enfrentamento de muitas situações adversas. Doce e dura, como eu costumo me definir.

A questão é que, nesses tempos, como eu tenho dito, vivemos em uma guerra em sentido amplo, infelizmente. Para lembrar uma expressão dos jovens contemporâneos... ‘não está sendo fácil’, no plano coletivo e pessoal.  No plano coletivo, vivemos sob rajadas de narrativas e sob o bombardeio de frases de efeito, frases pensadas por políticos inescrupulosos, para causar efeito de impacto e distrair a atenção das pessoas de suas ações. São frases disparadas com rigor de absurdidades e que, estrategicamente, agendam o pensamento, as falas, as postagens, as conversas, enfim, ocupam o tempo das pessoas, especialmente, as que compreendem que são frases absurdas. A questão é que essas frases são rajadas de narrativas que servem para distrair a atenção do que, efetivamente, interessa. A pauta, então, é deslocada das ‘ações’ para as ‘declarações’. A discussão e o tempo de produção de comentários, debates, reflexões passam a ser tomados pelo efeito das declarações, propositalmente absurdas, deploráveis, mas cujas consequências são infinitamente menores do que as ações que seguem feito um câncer, destruindo um corpo social construído, a duras penas.

Nesse sentido, eu chamo a atenção para o fato de que o texto tem que ser lido compreendendo quem é o autor do texto. O texto de fala, também. Quer dizer, que lugar é esse de onde esse ser fala? Seria possível a produção de outro texto? Eu deveria esperar outro  tipo de texto? Ou, o que está por trás dessa fala, propositalmente agressiva, para a sociedade ou para o grupo ou para mim mesma? O básico a se compreender, nesse sentido, é que há o texto dito e há a intenção do texto. Às vezes, há até mesmo o texto que não é dito, mas que tem que ser lido como texto, como informação, justamente produzida pelo silêncio.

No plano das relações pessoais, observo frequentemente a emergência de frases impensadas, resultado, muitas vezes, de um estado de perder-se em si mesmo e de dificuldade de enxergar o outro. Há um aumento da ansiedade e da sensação de que estamos numa nau à deriva, em certos momentos, sob o efeito das tais rajadas de ventos e tempestades.  Uma nau que vai sendo jogada contra os rochedos. Os rochedos podem ser, até mesmo, as próprias pessoas próximas, que perdem a condição de ‘porto seguro’ e se mostram insensíveis às necessidades mínimas de atenção e cuidado, paciência, empatia. Vejo-me, tantas vezes, como nos exercícios de karatê, tentando, tentando, fazendo de novo, renovando a atenção e dedicando-me a fazer o movimento ‘mais limpo’, mais preciso, mais firme, mais flexível ao mesmo tempo. Dou-me conta que sou sempre iniciante, em tudo na vida. Sou aprendiz eterna, ainda que essa eternidade vá se transformando, pelo modo como essa minha existência se expressa. Como eu tenho dito, recentemente, brincando e falando sério ao mesmo tempo, eu já estou treinando para ser alma.

Entre as minhas reflexões tantas (até porque, afinal, esse é um dos meus sustentos existenciais), nesses tempos de “Meu Deus!”, fico pensando: em que porto perdemos nosso coração? Em que momento soltou-se o fio de humanidade entrelaçada? Como acionar, em cada um, o olhar mais atento, a escuta mais apurada, a sensibilidade na pele, para que a preparação cotidiana seja de acolhimento, seja no sentido de ajuda mútua, de preservação e respeito pelo que recebemos?
Na minha condição viajante-peregrina, eu sei que vou sempre embora, em algum momento vou... mas enquanto estou por aqui, sigo tentando encontrar caminhos... com o olhar atento e os braços abertos para o bem-querer-bem. Igualmente, sigo revendo as bases de mim mesma, com o corpo e espírito prontos, para o que vier, em condições de defesa, para não ser abatida pelas rajadas de ventos e tempestades e pelas agressões cotidianas. A vida também tem seus revezes, e não são poucos. Eu também me preparei para eles. Em síntese, no plano pessoal e coletivo, respiro fundo e procuro ler os acontecimentos na sua complexidade. Não me detenho em declarações apenas... procuro ler o texto maior, da sequência de acontecimentos, ações, e da autoria do texto. Isso, às vezes, dói mais que o texto expresso, em si.