sábado, 29 de janeiro de 2011

Encontro amoroso com o Bapiú Maior

Ele é moreno, alto, olhos grandes, sorriso largo, bom papo. Muito bom papo. É um contador de histórias nato. Cada vez que o encontro, não me canso de ouvi-lo, por horas e horas, contando minuciosamente histórias de mundos e tempos diversos. Sábio, experiente, daqueles que vivem sempre aprendendo e ensinando. Daqueles que têm lição de vida guardada na manga. Vez por outra, vai puxando essas lições, misturadas com a narrativa saborosa de quem, ao mesmo tempo, encena, representa e vai botando pitadas de humor, malícia e cacos narrativos aqui e ali.

Ele chegou à tarde, ontem, na minha casa. Por contingências da vida, é raro que eu receba visitas. Quando recebo, normalmente são pessoas especiais, muito importantes para mim, tanto, a tal ponto que abro meu território subjetivo para compartilhar um tempo. Nessas ocasiões, normalmente, me delicio, porque a visita é sempre alguém muito desejado, por algum motivo ou vários. É o caso. Ele veio me ver. Que coisa boa! É uma alegria que isso aconteça, ainda que de vez em quando... ainda que demore um tempo. Eu também, infelizmente, não posso vê-lo mais seguido. Ao longo da vida, acabamos ficando distantes... acontece. Assim como acontece com grandes amores, ocorre também com o amor entre filha e pai. O Bapiú Maior é Antonio Baptista, o senhor amado meu pai.

Bapiú, porque seu nome é Baptista. A palavra essa surgiu de um texto do meu irmão Cláudio, que, um dia, quando morava na Itália, resolveu escrever uma carta em que fazia uma comparação entre os quatro irmãos, de sobrenome Baptista, com aves raras no mundo, singulares, diferenciadas, com jeitos e características bem específicas. Jeito de ser Bapiú. O jeito de ser Bapiú vem da formação subjetiva a partir da matriz Baptista, do Seu Baptista, como ele é mais conhecido na cidade onde mora, no interior de São Paulo, chamada Guarantã. Para nós, ele é o pai, o Bapiú Maior. Claro que a matriz desses quatro bapiús, em que me incluo, é também da Dona Rita Cardinale, que um dia se casou com o Bapiú Maior, pra nossa alegria, já que, por isso mesmo, existimos.. Sobre ela vou falar mais em outro texto...aguardem...

Sinto que nós aprendemos a nos aproximar, a compartilhar histórias vividas – fomos até a madrugada, alternando o contador de causos, rindo das nossas semelhanças e do quanto as histórias se combinam... uma puxa a outra e outra puxa outra... e assim seguimos horas fio, no fio das narrativas vividas e observadas em detalhes. Assim como quando estou com minha mãe, ao encontrar meu pai, penso que eu não podia ser outra coisa... a não ser comunicadora, jornalista...profissional voltada ao encontro. Os dois têm estilos diferentes. Meu pai, no seu estilo em princípio meio tímido, serião, quando se solta, quando tem confiança, quando fica à vontade na relação, é o que se pode chamar, numa linguagem mais antiga, ‘um cara boa praça’.

Eu sempre me emociono quando o encontro, porque me dou conta da força da ‘matriz’ Bapiú...do que ele chama, em sua célebre frase (pra mim): ‘é o jeitão da madeira!’. Ele usa essa expressão para responder àquelas situações em que o questionamos (claro que isso depois de grande, ninguém nunca pensou em questionar o Baptistão, quando criança.. nem em sonho): “Pai, que o senhor tem? Tá sério? Algum problema?”. Ele, em geral, nesses casos, com a sobrancelha crespa meio eriçada, responde: “Nada. É o jeitão da madeira!”. Gente, eu já pensei muito sobre isso. Isso é uma filosofia. Isso tem a ver com as teorias que eu estudo. Meu pai, então, de certa forma é um teórico. Teórico da vida, mas teórico. Dizer ‘é o jeitão da madeira’ é dizer que cada pessoa tem um jeito que vai sendo forjado, vai se desenvolvendo ao longo da vida, ao sabor do vento, das intempéries, das múltiplas vivências aqui e ali, do lugar onde se vive, do alimento (a comida e o alimento de afeto) que se tem. O Guattari diz isso em suas teorias, em uma linguagem muito mais complexa: dispositivos de subjetivação, de agenciamento do sujeito maquínico, a partir de fluxos incorporais a-significantes. Meu pai diz: “É o jeitão da madeira!”. Espetáculo de frase.

Eu amo também as comparações que ele faz entre as situações, as pessoas e o automóvel. Também já trabalhei um pouco isso, na abordagem de Comunicação e Psicologia, quando discuto a relação das pessoas com as máquinas. Vocês repararam o quanto as pessoas parece que vão se misturando às máquinas com as quais convivem, as máquinas de sua preferência? Meu pai é mecânico. Dos bons.. dos bons só não. É o melhor que eu conheço! Eu diria que ele é um doutor em carros. Sim, porque, do jeito que ele fala, sinto que ele não apenas conserta os carros, ele consulta, analisa, faz exames e, depois, receita, o que precisa ser alterado ‘no sistema’, para que volte a funcionar como antes. Ao receber um carro em sua oficina, ele vai se cercando do máximo possível de informações, captando os elementos sutis do discurso do proprietário do veículo, tentando entender a dinâmica do início do defeito, antes mesmo de botar a mão no carro. A isso se soma também um conhecimento global do cliente.. quer dizer, como a cidade é pequena, ele conhece praticamente todo mundo e sabe os (maus e bons) hábitos dos clientes, que podem ter gerado esse ou aquele defeito. Meu pai é um ‘expert’, um especialista em automóveis.

Ao ler o texto escrito até aqui para minha filha, Giulia – curiosa em saber o que escrevi para o vô – ela disse: “Ah. Acho que ele vai se emocionar. Acho que ele chora. Ele é meio serião, é o jeitão da madeira, mas a madeira não é tão dura quanto parece.” Giulia conhece bem meu pai. Sabe que por trás do jeito meio bravo às vezes, ele é alguém que teve o jeitão da madeira também moldado para se emocionar. Quando eu era criança, meu pai era mais severo, mais bravo, não se soltava. Claro, eu e meus irmãos éramos crianças, e ele tinha que nos ‘moldar’ no ‘jeitão da madeira’, para sermos responsáveis, trabalhadores, sérios (no sentido de comprometidos), sujeitos do bem. Ele conseguiu. Hoje, com os filhos criados, às voltas com o encontro com os netos, ele aconselha, diz o que percebe, mas também se permite se soltar, se emocionar, falar mais do sentimentos, se entregar mais... pra vida e para a relação amorosa conosco. Está mais solto. Eu obviamente não estou escrevendo o texto para que ele chore.. estou escrevendo para publicar o óbvio, para usar este espaço e declarar, aos quatro ventos, que eu o AMO – assim como é do meu feitio.

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