terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Tempos de Maluca


Eu trabalhei um tempo em um hospital psiquiátrico. Às vezes, penso que foi um estágio para ser jornalista, radialista, empresária da Comunicação, educadora, pesquisadora, mãe, mulher e tantas outras ‘utilidades’, digamos assim, que vou assumindo no cotidiano. Tudo fica ainda mais complexo, quando penso nas atividades e emoções que envolvem cada uma dessas perpectivas de ação. Pra mim, é tudo muito. Muita coisa para fazer. Muita conta pra pagar. Muito amor pra dar. Muitos filhos pra criar. Muitos amores... na vida. Um pouco de cada vez... de diferentes tipos, bem entendido.

Nessa minha tendência ao roteiro existencial, tenho a impressão de que inventei, pra mim, um papel de de super-heroína. Certo, super-heroína ‘à moda da casa’, sem grandes feitos, sem notoriedade, incógnita e tantas vezes não reconhecida. Uma heroína meio ‘macarrônica’, que se atrapalha nas cenas mais simples, principalmente as que gosta mais, as que gostaria ficassem impecáveis. É mais ou menos o que acontece quando a gente resolve fazer uma nossa receita especial, mas fácil de fazer, para uma visita importante. Caprichamos, caprichamos, mas, ódio, nem sempre dá certo, por incrível que pareça. Eu, na minha função de heroína do cotidiano, sou um pouco assim...me ‘apateto’, do verbo ‘apatetar-se’ – eu me apateto, tu te apatetas, ele se apateta...e assim vai.

A experiência, como um todo, no tal hospital psiquiátrico, é inefável, ‘indizível’, é muita coisa. Alguns episódios, no entanto, são inesquecíveis. Ali eu conheci dois dos grandes amores da minha vida. Bem, em se tratando de mim.. normal...conhecer amores em um hospital psiquiátrico; um só, seria ‘quase normal’. Não é o meu caso. Não, eles não eram pacientes. Eram enfermeiros. Queridos, queridos. Lindos, cada um no seu estilo. Os dois tímidos e malandros. Apaixonadamente tímidos. Na deles. Deliciosamente malandros. Havia uma proibição de relacionamentos amorosos entre os funcionários da tal clínica. Nós obedecíamos. Ali dentro. Ninguém sabia nunca de nada. Ninguém podia saber. Os dois nunca souberam, um do outro – até este texto, pelo menos.

Digamos que, em certo sentido, eu fui fiel. Eram histórias que não poderiam ser, que não poderiam existir e assim foram. Não existiram, em público. Já ouvi dizer que o que não se publica não existe. Então, vale para a ocasião. Só existem a partir de agora. Mas agora são histórias que prescreveram...o Direito deve prever isso também. Tempo de prescrição para histórias amorosas. Não posso ser mais punida. Bem, eu tenho que fazer a ressalva: era um outro tempo, eu era muito jovem e tinha muitas dúvidas – hoje também tenho, mas não com relação a quem amo...ufa! Alguma coisa, aprendi. Hoje conheço bem os meus quereres. Não resolve muito, mas conheço.

Bem, desculpas dadas, para o comportamento pouco recomendável – esse apaixonamento desmedido de jovem adulta (vem aí um texto sobre isso, sobre essa fase.. aguardem). Paciência. Mas, no hospital esse, vivi momentos importantes para a minha vida, além de conhecer esses dois lindos rapazes. Os pacientes me ensinaram muito. O ambiente, o desafio de (tentar) manter a lucidez e consciência em ambiente tenso, carregado de ‘derrames’ do inconsciente. Sim, porque, depois de dois anos trabalhando ali, eu entendi, claramente, que a grande diferença entre os sujeitos de fora e os de dentro é que, nós-de-fora, ainda conseguimos conter parcialmente o inconsciente e, na convivência, disfarçamos bem, ou mais ou menos bem, às vezes não tão bem assim. Foi isso que eu disse para uma senhora, que me perguntou se eu não tinha medo de conviver com os ‘loucos’. Aos poucos, eu fui entendendo que o pior é o preconceito. As pessoas, em geral, não se dão conta das próprias loucuras, aquelas situações do cotidiano em que parece que a vida (lúcida) se escapa e a gente fica à mercê dos fluxos abstratos, bem longe do controle racional. E isso ocorre com todo mundo, aqui fora e lá dentro.

Foi o que me alertou um paciente. Ele trabalhava comigo na recepção do hospital. Era uma atividade terapêutica. Ele solicitou ao médico AT-Recepção. Veio, agendou um horário fixo, para todas as semanas e estava, naquele dia, cumprindo seu ‘turno’. Era um paciente conhecido e sempre estava calmo. Aparentava ser uma pessoa muito calma. Eu não sabia porque ele estava internado. Não entendia. Não tinha nada de aparência de louco. Em um determinado momento, recebemos um outro paciente, que estava baixando, ingressando no hospital. Ele, como era de praxe, vinha acompanhado de três outros pacientes, que desempenhavam suas funções em outra atividade solicitada ao médico – Aréa de Recepção e Despedida (ARD).

O paciente que estava baixando era um velhinho impertinente e resmungão. Trazia duas sacolas (que eu tinha que revistar, para ver se não tinha algum objeto proibido). Uma delas tinha roupas. Tudo bem. A outra, remédios. Putz.. nada daquilo podia entrar. Eu, então, comecei a explicar para o paciente que ele não poderia levar os remédios para a Unidade Terapêutica, que eu os encaminharia para o médico e que somente o médico poderia receitar, anotar na planilha o que ele deveria ingerir. O velhinho foi ‘à loucura’, entrou em crise. Gritava, que eu o estava querendo matar, que eu era aliada da mulher dele... e mais um mundo de coisas. A cada caixa que eu retirava da sacola, para anotar o nome, ele soltava impropérios, xingamentos os mais diversos e ia explicando porque tinha que tomar o remédio. Eu, calmamente, explicava a mesma coisa, o encaminhamento dos remédios para o médico... etc.

Quando o paciente foi levado para a Unidade, eu me sentei, balancei a cabeça e proferi a fatídica frase do cotidiano ( que tantas vezes falamos sem pensar, sem considerar o que, realmente, estamos dizendo): “Esse senhor está louco de querer levar os remédios para a Unidade. Eu seria demitida...”. O outro paciente então, me interrompeu bruscamente, com a pergunta: “Onde você trabalha?”. A voz dele estava um pouco mudada, tinha um tom mais ríspido, severo, muito diferente do que eu estava acostumada ouvir dele. “Como?”, indaguei surpresa. “Onde você trabalha?”. Eu respondi, tentando ganhar tempo: “Seu fulano...lembra.. eu trabalho aqui, na recepção. O senhor está fazendo AT-Recepção. Lembra?”. Ele continuou com a expressão séria e insistia, repetia insistentemente a pergunta, falando cada vez mais alto: “Eu tô perguntando onde você trabalha? O nome do lugar?”. Quando eu, incrédula, com o aparente descontrole dele, disse o nome do hospital - bastante conhecido pelas suas características – ele respondeu: “Então, esse velho só pode ser doido, se está baixando aqui. O que você queria? E você, o que é?”. Bem, eu entendi o que ele dizia. O óbvio. De certa forma, por não cuidar o que dizia, diante de quem eu estava, com quem eu estava ao lado, eu também era um pouco doida. Não podia falar do paciente que estava baixando. Não podia reclamar dele.

A história me acompanha, desde então. Tento retomar sempre, para aprender de novo. Tentar entender o lugar do outro. Comprender o território em que estou produzindo meus textos de vida, minhas cenas existenciais. Depois de dois anos trabalhando no hospital, ‘pedi alta (demissão)’ e saí com código 4, que, na época, significava ‘quadro inalterado’.

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