Viagem é uma viagem. E a redundância aqui é proposital. Sim,
porque a viagem acontece como acontece, e não do jeito que a gente idealiza. É
preciso, então, aproveitar a viagem como ela se faz. No mais, o que completa a
viagem são nossos passos, nosso olhar para tudo e nossa capacidade de viver o
que se fez, independente de nossa expectativa. Defendo a atitude de viver a
viagem como ela vem, assim com seu jeito próprio, sua dimensão de inusitado, de
imprevisto. Isto já é uma grande Graça! Caso contrário, você pode se condenar à
frustração, antecipadamente, porque idealiza o resultado de algo sobre o que
não tem nenhum controle, o devir viagem, o acontecimento seguinte e o seguinte
e o seguinte e o seguinte... e isso vale para muitos tipos de viagens.
Quem me conhece sabe que amo viajar. Hoje, sou até mesmo
uma estudiosa do Turismo e, nessa área, minhas pesquisas envolvem a interface
Turismo, Comunicação e Subjetividade. Assim, venho estudando, especialmente,
algo que pode ser denominado como desterritorialização, ou seja, o processo em
que o sujeito ‘perde o chão de si mesmo’, sai do seu território, no movimento
de deslocamento do Turismo, nas práticas da Comunicação e, mesmo, na ‘viagem’
que se estabelece na produção do conhecimento. Na prática, como eu tenho dito, em
todas essas áreas que me interessam, está em jogo uma ‘viaagem’, para usar uma
expressão bem humorada, que é dita tantas vezes, alongando o som da palavra, em
forma de brincadeira. “Isso é uma viaaaagem!”. Só que, no caso aqui, estou falando
sério.
Lembro-me de uma vez que fui viajar para São Paulo, com meus
quatro filhos. Na época, já era divorciada. Decidi ir para a casa da minha mãe,
no interior de São Paulo. Então, comprei uma passagem mais barata, com embarque
previsto para cinco para meia-noite. Bem, eram muitas passagens, eu precisava
economizar. Era um período particularmente complicado, na aviação, os voos
sempre atrasavam (agora só atrasam quase sempre). Enfim, cheguei ao aeroporto
com as crianças ávidas de vontade de viajar, animadas, mas já cansadas. Elas
eram pequenas. E eu, doida, claro. Viajar sozinha com quatro crianças, à noite.
Enfim, era o que podia. Viajar para mim, é uma viaaagem! Eu topo! Faço esforço,
crio condições e vou, como posso. Nunca reclamo, sempre agradeço. Assim tem
sido sempre.
Então, chegamos ao aeroporto, e a moça do guichê da
companhia (que não me lembro mais qual era) me disse: “Senhora, o voo de vocês
está atrasado, sem nenhuma previsão de embarque!”. Hum, as alternativas eram
poucas. Praticamente nenhuma. Voltar para casa naquela hora, com as quatro
crianças, tentar remarcar as passagens ou esperar no aeroporto. Sim, decidi esperar no aeroporto. Juntei
bagagens de mão (quem tem filho pequeno sabe quantas são!) e os filhos. Fomos
para a área de alimentação. Conversar qualquer assunto com filhos italianinhos
é mais fácil diante da mesa, com comida.
Assim, ali, lanchando, disse: “Olha, vou contar uma coisa
para vocês. Nós vamos viver uma noite de aventuras no aeroporto!”. Lembro até
hoje, enquanto comiam, eles me olhavam curiosos: “Noite de aventuras? Como
assim? O que foi? Aventura como? A gente
não vai mais viajar? Que foi?”, disparavam perguntas, como metralhadoras. Eu,
em meio às rajadas de perguntas, respondi do alto da minha calma de mãe (não me
sobrava alternativa!): “Calma. Eu explico. A moça disse que nosso voo está
atrasado, sem previsão, quer dizer, ninguém sabe quando vamos embarcar. Então,
enquanto isso, vamos comer e passear, passear bastante pelo aeroporto. Vai ser
muito divertido!”.
Naquele momento, eles acreditaram e, claro, toparam a noite
de aventuras. Fizemos isso o quanto aguentamos. Até que, não podendo mais
caminhar de um lado para outro, fomos para a área de embarque, onde havia mais
uma centena, sim, uma centena de pessoas que lotavam poltronas dispostas no
saguão, como se fosse o próprio avião em maquete. Giulia e Pietro, os mais
velhos, tinham na época em torno de nove e oito anos, adormeceram logo. Giuseppe
e Chiara, cinco e quatro anos (se bem me lembro!), no entanto, permaneceram
agitados. Já era madrugada. Corriam de um lado para outro, especialmente quando
viam um funcionário da tal companhia aérea. Iam ‘buscar informações’. Depois,
diante da multidão das pessoas sonolentas, eles transmitiam o último boletim: “Ele disse que ainda não tem previsão!” e davam boas risadas. Pareciam estar brincando de repórteres
de tevê.
Enfim, a noite seguiu dessa maneira, até por volta de quatro
e meia da manhã, quando embarcamos para São Paulo. A viagem nunca mais saiu da
minha memória. Estar ali, sozinha com os quatro, preocupada com o que sentiam,
com o modo como suportariam o cansaço, com o que eu faria no momento que nos chamassem
para embarcar, se os quatro estivessem dormindo e eu não conseguisse
acordá-los. Esforço também para não ter sono, preocupada com o ambiente de
aeroporto, que, sei bem, exige sempre atenção especial, quando se trata de
crianças por perto. Os olhos pesavam, o cansaço era imenso, mas eu entendia que
tudo isso fazia um sentido maior, que a vida mesma é assim, quando se viaja,
quando se tem filhos, quando se tem ‘pessoas sob a nossa responsabilidade’. É
preciso lidar com os imprevistos, ter paciência, acalmar e acomodar os
passageiros, os nossos acompanhantes de viagem, ter cuidado com cada um e
atenção às suas necessidades.
Gostei do desfecho, do modo como lidei com a situação, apesar do cansaço, da exaustão que
sentia naquela madrugada. Percebo que ela não é diferente de muitas que senti,
em outros diferentes momentos da vida, uma mistura de exaustão e calma
estratégica, entendendo que só a calma pode me ajudar a sobreviver o momento.
Na verdade, quando falo de viagem, falo também da Grande Viagem, a vida. Essa é
uma das minhas temáticas preferidas, para pensar e escrever...há sempre muitos
imprevistos a enfrentar, intempéries, há também lindos visuais depois de curvas
nas estradas ou mesmo no céu, durante os voos. Há encontros e desencontros.
Pessoas que conhecemos, reconhecemos e reencontramos nas viagens. Há
companheirismos consolidados em viagens e amores que podem ser (re)conhecidos. Assim
tem sido comigo, venho acumulando histórias e parcerias de viagens, lidando com
o caráter de mutação inerente, com a desterritorialização também em mim... a
mutação constante, a necessidade de me reinventar, de também de me reencontrar
nas viagens, na Viagem, também na viagem de escrever-me!