sábado, 15 de abril de 2017

PAREDES DE HOSPITAL SÃO TELAS DE MEMÓRIA!

A experiência de ir a um hospital pode significar um episódio existencial curioso, ainda mais se temos o ‘defeito de fabricação’ de sentir, observar, refletir de modo intenso sobre tudo. É o meu caso: tenho a mania de ‘mergulhar na cena’, com a intensidade de quem se investe do personagem de um roteiro construído para ganhar prêmios. A lógica é a seguinte: se é pra viver, entrar em cena, então vamos ‘na base da plenitude’, vamos com tudo. Parabéns, Maria Luiza, em geral, isso é bom, mas, às vezes, também, traz uma avalanche de sentimentos com a qual é preciso lidar. É o caso do que pude entender, quando me veio à mente a tal frase: “Paredes de hospital são telas de memória!”.

Estive recentemente no hospital da Unimed, em Caxias do Sul, para um 'procedimento' relacionado a minha própria saúde. O procedimento é razoavelmente simples, mas envolvia cirurgia, frequentar o centro cirúrgico, portanto, e passar por toda a parafernália de preparação, até usar aquela ridícula camisola aberta atrás, associada a uma touca de cabelos e sapatos de panos. Quer dizer, o quadro da dor, por ficar meio ‘coisificada’, numa espécie de ‘boneco humano’, que vai passar por um ‘procedimento’. Não há como se sentir confortável numa cena dessas.

Pior, me pediram para tirar os óculos. Gente, eu sou muito míope. Sem óculos, fico entregue a um mundo embaçado. Lembro de um professor da USP, Eduardo Peñuela Canizal, da disciplina de Poética das Mensagens Não-Verbais. Ele dizia: “na imagem, as zonas de não nitidez são espaços de encontros com o inconsciente”. Bom, no meu caso, sem óculos, tudo o que eu vejo são zonas de não nitidez, quer dizer, a possibilidade de encontro com o inconsciente é 100%. 

Bom, além disso, há o tempo de espera e, claro, as paredes. Não sei se alguém já pensou nisso, mas as paredes de hospital, nesses tempos de espera ganham vida. Pior que isso: ganham vidas passadas. São telas de memória. Eu tive o ‘privilégio’ de passarem um paciente na minha frente e, em função disso, tive mais tempo para ‘assistir às paredes’. Experiência forte. O tempo de espera me permitiu rever, na tela de memória, muita gente e muitas cenas vividas. Claro que, na brotação de memórias, eu reconheço uma edição dos momentos, pela intensidade de afetivação. Brotaram, na tela parede, momentos bons e ruins. Momentos da batalha da vida, quase constante, e dos hiatos significativos de felicidade plena, os momentos de maior expressão amorosa. Penso que é disso que é nutrida minha passagem por aqui. 

Sim, foram os amores que ganharam mais espaço e desfilaram na tela, nas diversas situações. Amores diversos e de diversos tipos. Fui sentindo, observando e refletindo o quanto o amor se mostra de diferentes maneiras e se associa, nesse sentido, a diferentes pessoas, nos múltiplos momentos da vida. Eu sou profundamente grata por todos os momentos e seres que me ensinaram e possibilitaram a viver o amor, em suas múltiplas expressões. Disso, fiz meu sustento existencial, no que é, para mim, o principal alimento, a confiança amorosa! Claro que, nem tudo são flores, nem mesmo nos episódios amorosos. Nem sempre os desfechos correspondem à proporção do sentimento investido, porque  o amor não segue a lógica do mercado financeiro, amarrado com controles rígidos. Vale dizer, que mesmo esses mercados estão sujeitos a intempéries e tempestades que, tantas vezes, parecem devastar tudo. Com o amor, não é diferente.

Sinto, no entanto, que o amor tem mais a ver com a agricultura, com o aprendizado do cultivo da natureza e poética de semear e ser semeado, com o encanto de sentimentos profundos. O amor parece ir penetrando as camadas mais fundas de nós mesmos, instalando-se, espalhando-se, fazendo-se dono do corpo físico e abstrato. O amor, o amor messsmoo, atinge camadas profundas da alma, do nosso espírito. O amor não fica na superfície. Não é rápido, não é fugaz. Não há tempo, não há acontecimento, não há tempestade que desfaça o que atingiu os substratos profundos. Bah!

Diante da tela da memória, então, fui revendo a vida toda. Emocionada comigo mesma, num tempo raro de parar e deixar-me estar ali, ‘re-vendo’ tudo. Também pude reforçar algumas percepções que já tinha: tudo é muito rápido. A vida passa muito rapidamente. Altera-se, com o tempo, a própria noção de tempo e a constatação de que ‘a vida inteira’ é uma sequência de flashes. Há que se viver mesmo, intensamente, porque, quando se vê... já se foi. Isso reforça, em mim, a valorização do estar junto, da preciosidade que é cada instante de estar junto às pessoas que amo.

Mais que nunca, esse é o meu grande desejo e investimento existencial, sempre que possível, especialmente como desejo compartilhado: conviver, viver com, ‘com-viver’. Como eu disse esses dias, para um dos meus filhos, é preciso saber reconhecer onde estão os portos-seguros, o resto é tudo ‘viagem’! 


Um comentário:

  1. Lindo ! Você consegue animar as palavras... de um jeito que se consegue enxergá-las na cena ! Adoro isso... (Gisele Olabarriaga)

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