domingo, 2 de abril de 2017

Desapego aos ‘parágrafos’, no texto e na vida!

Nesta semana, em uma das orientações, um detalhe me chamou a atenção: um parágrafo insistente, meio que encrustado no texto da minha aluna, desses que se negam a ir embora. Sim, o parágrafo não estava bem ali, era visivelmente algo que atrapalhava o fluxo do texto. Eu tinha tentado sinalizar para a pesquisadora. Cuidadosamente, propus que aquela lógica de escrita fosse aproveitada e que ela iniciasse o texto com sua experiência pessoal, que ali estava inscrita, mas que adaptasse à condição vivida na pesquisa, que seria interessante e tal e tal. Entendi que havia uma força, uma energia naquela ideia. Ela sorriu satisfeita. Na orientação seguinte, trouxe o parágrafo deslocado, mas, quando fui ver, estava ele ali, intacto, ‘imexível’, firme, como quem diz: “daqui não saio, daqui ninguém me tira”. Ele, o parágrafo, ‘em pessoa’, digamos assim. Bem, foi daquelas situações em que se tem que parar tudo e conversar sobre o assunto, no caso, sobre a necessidade de desapego aos parágrafos, no texto e na vida.

Desde minha pesquisa na USP, sobre processos de escrita de jovens adultos, como expressão da subjetividade e da relação com os meios de comunicação, tenho muito claro o quanto o texto é uma trama que expressa outras tramas mais profundas, mais densas, internas e externas. Então, o que está ali, inscrito, não apenas significa pelo conteúdo, mas também representa um processo de inscrição, em que o sujeito vai se marcando, inscriacionando, ins-cria-acionando e se entregando ali, marcado, com suas marcas profundas.

O que me interessa refletir, neste texto, no entanto, é menos o texto da minha orientanda e mais a ousadia dos parágrafos que insistem em não ir embora. Sim, porque, os parágrafos representam núcleos de ideias, blocos de pensamentos. Assim devem ser. Então, acontece, muitas vezes, que temos alguns parágrafos-blocos de pensamentos que se constituem com tanta força, que parece que se grudam em nós mesmos, como se parte de nós fossem e, pronto, se tornam, eles mesmos, parte de nosso corpo, do nosso jeito. Quando vemos, estamos de novo dizendo o mesmo trecho de texto, refazendo o mesmo enredo, revivendo a mesma trama. Culpa de quem? Culpa de quem? Dos parágrafos, que não vão embora de nós. Sim, preciso agradecer minha orientanda que, com seu ‘parágrafo teimoso’, me ajudou a perceber isso tão claramente.

A gente passa a vida tentando seguir Viagem, inventar o próprio destino, ser sujeito do próprio texto e, quando vê, há um parágrafo, um especialmente – há outros encrustados nos meandro internos, mas um deles com mais força – que insiste. Se você resolve fazer outros caminhos narrativos, não adianta, quando vê, ele despenca na sua frente e vai se imiscuindo no texto, meio rindo, se fazendo de desentendido, e pronto. Está ele ali de novo, majestoso, no seu texto cotidiano. Sem constrangimento. Eu já devia ter percebido isso. Não sei como a Madeleine, minha personagem que se diz esperta, não me alertou. Um parágrafo que deve fazer parte de um grupo internacional de parágrafos, que se dedicam especialmente a perseguir pobres escritoras desavisadas e reaparecem frequentemente como fantasmas, como corpos extraterrenos, como espíritos vindos de vidas passadas e se colocam diante de nós em praças, ruas, dentro dos ônibus, na universidade, nos lugares os mais diversos.

Claro, eu reconheço, os ‘parágrafos’ insistentes têm seus encantos. Não fosse assim, não vingariam como parágrafos-grude-na-memória. Esse é verdadeiramente um dos seus problemas (e dos meus!). Mais que nunca, percebo que escrever é como viver; escrever para mim é minha própria vida. Então, vou seguir, por aqui e ali, escrevendo enquanto posso, tentando reconhecer os incidentes dos parágrafos esses, agradecê-los todos, porque têm graça e alegria, mas também seguir inscriacionando-me de outras maneiras e produzindo parágrafo novos.

No mais, recomendo refletir sobre os parágrafos insistentes, sobre as causas disso, sobre o quanto que, de certa forma, contribuímos, para que esses blocos de pensamentos, fiquem ali e aqui dentro de nós.  Entendo que a trama da vida é complexa. O enredo do nosso destino é escrito por um Autor maior, que parece, às vezes, brincar conosco e, quase sempre, nos desafiar, oferecendo situações que nos põem à prova. A volta e revolta e insistência dos parágrafos esses deve estar ‘no pacote’ de experiências previstas, pelas quais devemos passar. Fico pensando: como vamos ‘sobre-viver’ aos parágrafos insistentes, no plano do bloco de pensamentos e nas microssituações cotidianas em que eles reaparecem? Como vimos e vivemos, não há respostas, só texto a ser produzido, de novo, todos os dias, só a Viagem ainda em andamento... é um exercício constante. Vamos adiante, então, que o caminho é longo e vamos de mãos vazias, com os parágrafos já escritos e vividos, no coração e na mente. Uff e que bom, ao mesmo tempo! Sempre é tempo de tentar aprender a lidar com parágrafos cristalizados no substrato profundo de nós mesmos! Eu espero que seja assim, ao menos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário