Nesta semana, em uma das orientações, um detalhe me chamou a
atenção: um parágrafo insistente, meio que encrustado no texto da minha aluna,
desses que se negam a ir embora. Sim, o parágrafo não estava bem ali, era
visivelmente algo que atrapalhava o fluxo do texto. Eu tinha tentado sinalizar
para a pesquisadora. Cuidadosamente, propus que aquela lógica de escrita fosse
aproveitada e que ela iniciasse o texto com sua experiência pessoal, que ali
estava inscrita, mas que adaptasse à condição vivida na pesquisa, que seria interessante
e tal e tal. Entendi que havia uma força, uma energia naquela ideia. Ela sorriu
satisfeita. Na orientação seguinte, trouxe o parágrafo deslocado, mas, quando
fui ver, estava ele ali, intacto, ‘imexível’, firme, como quem diz: “daqui não
saio, daqui ninguém me tira”. Ele, o parágrafo, ‘em pessoa’, digamos assim. Bem,
foi daquelas situações em que se tem que parar tudo e conversar sobre o
assunto, no caso, sobre a necessidade de desapego aos parágrafos, no texto e na
vida.
Desde minha pesquisa na USP, sobre processos de escrita de
jovens adultos, como expressão da subjetividade e da relação com os meios de
comunicação, tenho muito claro o quanto o texto é uma trama que expressa outras
tramas mais profundas, mais densas, internas e externas. Então, o que está ali,
inscrito, não apenas significa pelo conteúdo, mas também representa um processo
de inscrição, em que o sujeito vai se marcando, inscriacionando,
ins-cria-acionando e se entregando ali, marcado, com suas marcas profundas.
O que me interessa refletir, neste texto, no entanto, é menos
o texto da minha orientanda e mais a ousadia dos parágrafos que insistem em não
ir embora. Sim, porque, os parágrafos representam núcleos de ideias, blocos de
pensamentos. Assim devem ser. Então, acontece, muitas vezes, que temos alguns
parágrafos-blocos de pensamentos que se constituem com tanta força, que parece
que se grudam em nós mesmos, como se parte de nós fossem e, pronto, se tornam,
eles mesmos, parte de nosso corpo, do nosso jeito. Quando vemos, estamos de
novo dizendo o mesmo trecho de texto, refazendo o mesmo enredo, revivendo a
mesma trama. Culpa de quem? Culpa de quem? Dos parágrafos, que não vão embora
de nós. Sim, preciso agradecer minha orientanda que, com seu ‘parágrafo teimoso’,
me ajudou a perceber isso tão claramente.
A gente passa a vida tentando seguir Viagem, inventar o
próprio destino, ser sujeito do próprio texto e, quando vê, há um parágrafo, um
especialmente – há outros encrustados nos meandro internos, mas um deles com
mais força – que insiste. Se você resolve fazer outros caminhos narrativos, não
adianta, quando vê, ele despenca na sua frente e vai se imiscuindo no texto,
meio rindo, se fazendo de desentendido, e pronto. Está ele ali de novo,
majestoso, no seu texto cotidiano. Sem constrangimento. Eu já devia ter
percebido isso. Não sei como a Madeleine, minha personagem que se diz esperta,
não me alertou. Um parágrafo que deve fazer parte de um grupo internacional de
parágrafos, que se dedicam especialmente a perseguir pobres escritoras
desavisadas e reaparecem frequentemente como fantasmas, como corpos
extraterrenos, como espíritos vindos de vidas passadas e se colocam diante de
nós em praças, ruas, dentro dos ônibus, na universidade, nos lugares os mais
diversos.
Claro, eu reconheço, os ‘parágrafos’ insistentes têm seus
encantos. Não fosse assim, não vingariam como parágrafos-grude-na-memória. Esse
é verdadeiramente um dos seus problemas (e dos meus!). Mais que nunca, percebo
que escrever é como viver; escrever para mim é minha própria vida. Então, vou
seguir, por aqui e ali, escrevendo enquanto posso, tentando reconhecer os
incidentes dos parágrafos esses, agradecê-los todos, porque têm graça e
alegria, mas também seguir inscriacionando-me de outras maneiras e produzindo
parágrafo novos.
No mais, recomendo refletir sobre os parágrafos insistentes,
sobre as causas disso, sobre o quanto que, de certa forma, contribuímos, para
que esses blocos de pensamentos, fiquem ali e aqui dentro de nós. Entendo que a trama da vida é complexa. O
enredo do nosso destino é escrito por um Autor maior, que parece, às vezes, brincar
conosco e, quase sempre, nos desafiar, oferecendo situações que nos põem à
prova. A volta e revolta e insistência dos parágrafos esses deve estar ‘no
pacote’ de experiências previstas, pelas quais devemos passar. Fico pensando: como
vamos ‘sobre-viver’ aos parágrafos insistentes, no plano do bloco de
pensamentos e nas microssituações cotidianas em que eles reaparecem? Como vimos
e vivemos, não há respostas, só texto a ser produzido, de novo, todos os dias,
só a Viagem ainda em andamento... é um exercício constante. Vamos adiante,
então, que o caminho é longo e vamos de mãos vazias, com os parágrafos já
escritos e vividos, no coração e na mente. Uff e que bom, ao mesmo tempo! Sempre
é tempo de tentar aprender a lidar com parágrafos cristalizados no substrato
profundo de nós mesmos! Eu espero que seja assim, ao menos.
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