quinta-feira, 26 de julho de 2018

Casas são textos de vida


Casa da gente é morada, é templo, é texto de vida. Tenho dito que ‘tudo é texto’. E foi essa ideia que me assolou quando cheguei em casa hoje, no Solar Cardinale de Caxias do Sul. Percebo que sigo me sensibilizando pelas singelezas do cotidiano, apreendendo, nessas minúcias, narrativas existenciais.  Tem sido assim, sempre. Com a sensação de hoje, me dei conta que reside em mim, aconchegada, a menina de antigamente, que se detinha, tempos e tempos, olhando as miudezas das casas da vó, da nonna e da mãe. Nas nuanças da simplicidade das rendas, das plantas, das flores cuidadosamente arrumadas, as louças, as fotos espalhadas pela casa... cada coisa era parte de um texto, de vários textos, que contavam histórias. Na casa da minha mãe, ainda é! No interior de São Paulo, na cidade de Guarantã, cada vez que visito minha mãe, entendo que a casa dela é um templo, um canto de contemplação da vida, de aprendizado e de renovação espiritual. A casa della mamma! Ali eu revejo a minha própria história, da mamma Rita, dos ancestrais todos italianos, também reencontro a condição de gestação dos bapiús, eu e os manos, e suas brotações.


Percebo que fui, aos poucos, também, me compondo em ‘textos de casa’, ‘textos de vida’, no meu caso, agora, de duas casas, que tenho a graça de ter, dois Solares Cardinales, um em Porto Alegre e outro em Caxias do Sul. Minhas casas são também meus textos de vida, têm um tanto (ou muito!) do meu jeito, das minhas próprias histórias inscritas nos detalhes, as viagens tantas, também as viagens imaginárias e a minha relação com os personagens, os meus e os de outros seres ‘criadores de gentes, na literatura e na vida’. Personagens e autores sempre foram grandes companheiros para mim! Permanecem sendo, a tal ponto que geraram uma espécie de usina de brotação de ideias de projetos de investigação e criação em Comunicação e de gestação de outros personagens. Eu mesma fui me autorizando a ser autora do meu próprio texto, inscrevendo-me em personagens tantos, que começam com as próprias leoas, a quem agradeço aqui. Meus personagens estão soltos pelas minhas casas. Se você, um dia, me visitar, certamente poderia encontrar um deles... soltos, também se sentindo ‘em casa’.

Minhas casas trazem inscrições do meu inconsciente, expressas em materialidades que deixam escapar traços de singularidade dessa criatura que se fez gente, assim amorosa, assim batalhadora, assim um ser forte e doce, que se empenha todo o tempo em flor-e-ser, em florescer... entregar-se a flores e seres, cultivando amorosidade. Percebo que cultivo seres, assim como cultivo a mim mesma, todos os dias, tentando melhorar, tentando ser melhor nos detalhes, tentando aprender a ser mais calma, mais amorosa, mais cuidadora, mais paciente, também mais forte e mais valente, para que ninguém confunda amorosidade com fraqueza ou fragilidade. Eu já entendi que estou bem longe da fragilidade, porque quando revejo minha história de vida, penso que poucas pessoas teriam sobrevida a algumas situações que superei. Momentos de altíssima pressão.

Reconheço que caminhei por abismos existenciais, no fio fino da esperança e fé, que me possibilitou saltar do outro lado. Assim, também, atravessei grandes tempestades, sob rajadas de ventos, escapando de grandes desabamentos, de mim mesma, tantas vezes. Talvez por isso mesmo, tenha chegado a esse ponto assim, ao mesmo tempo amorosa ao extremo e com poucas reservas de paciência, para agressões e descasos. Preciso muito de calma e paz, de estar em calma e serenidade, em paz amorosa. Não tenho mais muitas reservas emocionais, porque sempre estive ‘no limite’ de mim mesma, oferecendo o meu máximo. Hoje, me reconheço. Entendo que não sou linear, sou complexa, ao mesmo tempo que a simplicidade me encanta, principalmente nas pessoas, na natureza e nas relações. Quero ser quem sou, plena e intensamente, senhora da minha idade, do meu corpo. Quero roupas simples e bonitas, do meu jeito, do modo que entendo me mostra melhor, por inteiro. Sou, ainda, um pouco a menina do interior de São Paulo, e também sou mãe de cinco filhos, jornalista, cientista, envolvida com produção de conhecimento nas áreas de Turismo, Comunicação e Subjetividade, na perspectiva ecossistêmica da vida, entre várias universidades e pesquisadores. Sou poeta e escritora. Sou Mulher, Malu Mulher! Olhem só, meu apelido ‘Malu’ se transformou em uma das minhas marcas mais fortes e hoje me dou conta que essa denominação surgiu na época da minissérie da Rede Globo, Malu Mulher, que apresentava uma mulher separada, que enfrentava a vida sozinha,  tentando criar a filha e ‘começar de novo’.

Todas essas elucubrações me foram possibilitadas pelas reflexões às voltas com minhas duas casas. Nesta semana, um amigo visitou o Solar de Porto Alegre e disse que a casa é um texto. Um texto, não. Muitos textos. Ele tinha os olhos brilhantes, estava sorridente, envolvido com os detalhes do lugar, a estrutura arquitetônica labiríntica do apartamento e o curioso amontoado de detalhes que me inscrevem, que contam a minha idade, as minhas histórias, as vidas tantas entrelaçadas na família, nos relacionamentos vários, entre alunos e amoramizades. História de alegrias, de dores e também de amores. Não seria diferente, sendo eu quem sou. Em meio às nossas conversas sobre temas e teorias variadas, ele se lembrava de alguma coisa e dizia: ‘nós temos que fazer uma festa aqui!”. Fiquei feliz com a reação dele e, ao mesmo tempo, achei curioso o fato de alguém se encantar com um lugar que tem também tanta expressão de sofrimento, com o tempo. Em vários cantos e recantos, o apartamento ainda demanda muitos cuidados especiais, precisa de reparos, que não pude fazer, durante uma longa fase da minha vida, em função de estar voltada para apagar ‘incêndios cotidianos’, com ocorrências familiares, de uma turminha de quatro filhos pequenos. Passei a maior parte da vida sozinha, para atendê-los, para resolver os problemas cotidianos, questões de saúde, a avalanche de tarefas e necessidades. Tudo foi tanto, tudo foi tão intenso, que precisei até mesmo, em certo momento, desterritorializar, gerar uma brotação do Solar, da Pazza Comunicazione, da minha vida e migrar para Caxias do Sul, onde fui trabalhar na UCS.

A chegada no Solar de Caxias hoje me mostrou que produzi aqui uma dobra, um des’dobra’mento de mim e da casa. Eu me desdobrei, literalmente, por amor, por um amor especial e pelo amor aos filhos, buscando ‘sobre-vivência’, em sentidos vários. A casa aqui floresceu, o texto de vida floresceu, a Malu floresceu, o Amorcomtur floresceu e o amor em mim só aumentou! O tempo, em mim, fez consolidar os substratos de amorosidade que construí, me ensinou a seguir semeando e a aceitar o que em mim brotou forte, com a profundidade de laços que enredam lindamente vidas e vidas, textos que transversalizam vidas, vidas que se fazem textos, se fazem casa, se tornam histórias... de amor, claro, com seus caminhos e descaminhos, mas histórias de amor sempre. Eu também aprendi, vivendo, que histórias de amor nem sempre têm os desfechos esperados, mas seguem sendo lindas, seguem sendo histórias, seguem valendo a pena. Assim, sigo.

segunda-feira, 16 de julho de 2018

Madrugada no Solar


Meus olhos se acenderam de madrugada, mais uma vez, no Solar Cardinale. No mesmo horário, aquele, em que eu acordei outras vezes: 3:34. Curioso fenômeno esse, de ser acordada num horário preciso, em datas tão diferentes. Eu fui dormir cedo, talvez tenha sido isso, mas, de qualquer forma, é curioso acordar 3:34, como das outras vezes. Talvez seja um horário espiritual, alguma conexão maior. A questão é que, quando acontece isso, eu acordo plenamente.  Do verbo: acordar... a-cor-dar, como gosto. Acordar quando os olhos abrem, sem que um despertador toque. Acordar por mim mesma, desperta, sem sono.

No pensamento, os amores maiores. Reviso cada um deles, os filhos e o amor da vida ‘aquele’. Revejo-os no seu riso, no seu jeito comigo. Imagino-os dormindo e espero que o sono seja calmo, que os sonhos sejam bons e alegres, que o descanso da noite ajude a serenar as emoções e recobrar as forças para a vida, para o dia que vem logo. Aos poucos, os ‘a-faz-eres’ também começam a se fazer presentes, como provocações. Eu sei, eu sei, eu sempre tenho tanto para fazer, porque fiz assim a vida, plena, entrelaçada entre seres e projetos, entre flores e seres, como eu costumo dizer. Gosto que seja assim, embora pense, às vezes, que eu tenho que cuidar essa minha fome de vida, a metralhadora de desejos e minha tendência a disparar invencionices e engendramentos de novas e novas e novas desterritorializações – ações constantes de sair do território existencial, mudar, movimentar, produzir movimento. Por outro lado, penso o que pode um ser cigano como eu, senão produzir movimento, acionar mutações, em mim, na casa, na vida, nos projetos, nos outros? Já entendi que a vida se refaz assim, se renova, se faz de novo. Assim tem sido.

Movimentos de amorosidade. Sim, cada um deve saber a que veio nessa vida. Eu vim assim, amorosa sem conta, plena de desejo de ‘inventar’, desejo de criação, de inscriacionices e movimentos que me levem ao coração das pessoas, aos lugares distantes que tanto sonhei, aos territórios secretos dos sentimentos dos seres que amo. Talvez por isso seja cientista, envolvida especialmente com Comunicação, Subjetividade e Turismo. Desejo de viajar nos caminhos do coração, dos mundos em que há seres que me querem, de me fazer presente na lembrança, como ser amoroso, como ser-flor, como campo de margaridas, como lugar calmo na vida, porto seguro para quem quer aportar e ficar junto, um tempo, o tempo possível nessa vida de Meu Deus!

Gosto do que vivo, nos encontros da vida, na graça de entrelaçamento com as pessoas. Gosto de estar sozinha também, ainda que a sensação seja de não estar só, mas nutrida de afetos tantos, dos fluxos intensos com quem me envolvo. Lembro do Drummond, que diz, em um dos seus poemas mais lindos, que “a ausência é um estar em mim, e sinto-a branca, tão pegada, aconchegada em meus braços, que essa ausência assimilada, ninguém rouba mais de mim.”.  Essa condição de estar em mim, me faz sentir, ainda, aqui, de madrugada, a conexão com os seres com quem me sinto mais envolvida, na vida, em envolvimentos de diferentes modos. Sou grata.


quarta-feira, 4 de julho de 2018

O barco "Florescer Projetos"



E de repente, ela olhou do lado e sentiu um profundo amor por cada detalhe, a flor da toalha, o enfeite trazido de uma viagem, a lembrança que ganhou de um amigo.... tudo, cada coisa, passou a ser uma imensidão de expressão de felicidade.

Tá doida, santa? Ela sempre foi assim! Assim meio encantada com o mundo, com as coisas, todas... inebriada da vida, meio ‘amalucada’.

Não, agora é diferente! Parece que, finalmente, as coisas estão voltando para o lugar, dentro dela. O tempo é sábio. O amadurecimento espiritual ajuda muito a compreender as teias-tramas da vida! Talvez porque não há mais resquício de mágoa, talvez porque as feridas sararam, talvez porque ela entendeu que as coisas são como são, mesmo que não compreenda bem os motivos... Percebeu, também, que há profundas camadas de verdade, que subjazem em mares e marés, e nas tempestades tantas, que, às vezes, tiram tudo do lugar...

Ela, então, levanta o olhar e encontra um barco, que ganhou de uma aluna querida da UFAM, Taciana é o nome dela. Sorriu, lembrando o encanto daquele momento. Taciana participava de uma oficina de Usina de Saberes Amazônicos, para fazer florescer a escrita na pós-graduação da UFAM. Em uma tarde, ela disse: “Professora, estou fazendo um presente para a senhora!”. À noite, chamou no facebook, e disse: “Está quase pronto o presente!”. A professora agradeceu, enternecida, com a iniciativa dela, no sentido de fazer algo para dar de presente, com o carinho, a doçura do gesto... No outro dia, ela chegou com uma cuia e um barco e disse: “Aqui na Amazônia, a cuia representa a amizade, e a gente só dá barco para quem a gente quer que volte sempre!” . 

Eu nunca mais esqueci a cena. No barco,  está escrito: "Florescer Projetos".
Sou muito grata! Muito!