No palco, entre os excelentes bailarinos amorosos,
afetivamente afetados, de olhos brilhantes e movimentos e gestos precisos, está
uma ruiva crespa, de cabelos desalinhados encaracolados: minha filha Giulia
Baptista Vieira. Eu já imaginava a emoção do espetáculo. Pressentia, pelos
‘cacos de fala’ de nossas conversas sobre a produção, pelos momentos
‘aperitivos’ do espetáculo, divulgados nas redes sociais, e também, claro,
porque Roberto é Roberto, um conceito em música amorosa, singular, intenso,
pela singeleza com que expressa, diretamente, alguns dos mais profundos
sentimentos do amor, de amizade, irreverência e humor. O espetáculo foi tudo
isso e mais um pouco: resgatou o melhor da tradição ‘Abobrinhas Recheadas’, com
brincalhonices saborosas, em diálogos muitos, com as músicas de Roberto Carlos,
mas também com a arte em geral.
Fiquei pensando que estava onde gosto de estar: na comissão
de frente, primeira fila de cadeiras (no caso de hoje), embevecida com a
maturidade da minha filha, em cena, e também com o refinamento do espetáculo.
Movimentos precisos, sujeitos entrelaçados em alegria e intensidade, em situações
de constante desabar e levantar-se, metáfora plena de situações na vida, em que
‘se você cair, do chão não passa!’. Em muitos momentos, lembrei-me da fala de
Fernando Sabino: “De tudo, ficaram três coisas: a certeza de que ele estava
sempre começando, a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que
seria interrompido antes de terminar. Fazer da interrupção um caminho novo.
Fazer da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sono uma ponte, da
procura um encontro”.
No espetáculo, é encantatória a habilidade de transitar com
graça e maestria entre a queda e o salto, as palavras e os silêncios, os abraços
e os afastamentos. No jogo de contrastes, a solidão e os encontros marcam
também diversas situações das ‘abobrinhas de hoje’. Você pisca e um bailarino salta, outro rasteja, outro
dá cambalhotas. Um grita, outro emudece. Eles se alinham, desalinham. Como
estrelas do universo, vão se movimentando em combinações várias, em meio à
névoa do Universo cênico. No canto da cena, um que outro deixa rolar lágrimas
emocionadas, de quem andou muito para estar ali, de quem fez e faz força, para
reinventar o passo, o ‘movimento afetivo nosso de cada dia’. Eu penso: esse
choro engasgado me fala de engasgos de histórias pessoais, que eles sabiamente
transformam em arte da melhor qualidade. Meus olhos vagueiam na cena,
encontrando-os, nos seus traços e gestos singulares, como quem quer
acarinhá-los, em retribuição a tal proporção de entrega para a plateia.
Minha filha é uma entre os artistas profissionais em cena.
Eu não me canso de repetir: Dance Giulia! E a cada espetáculo, a cada momento
que a vejo exuberante e feliz em cena, eu penso que tenho orgulho por sua
escolha pela dança, orgulho de ter uma filha que escolhe ser feliz
profissionalmente, fazendo o que mais ama! Nesse sentido, eu também estou ali,
na sua emoção em cena. O Amor em Cena! O Amorendança! Que ela faça da profissão
a sua maior vibração, a sua melhor performance. Talvez por isso mesmo, um mar
de pulsações me invadiu, quando eles dançaram a canção que eu tantas vezes
cantei para ela dormir, falando que ‘debaixo dos caracóis dos seus cabelos há
uma história para contar’. Olhei para seus cachos ruivos em cena, seu corpo
altivo, senti sua emoção no peito. Eu estava bem próxima, não hesitei e, com as
mãos, formei a representação do coração que entreguei para ela há quase 22
anos. Ela não viu, mas eu sei, nossos corações batem no mesmo ritmo, o ritmo da
dança do amor entre mãe e filha!
Antes do espetáculo, eu estava curiosa! Sim, porque é
delicado ‘mexer com Roberto Carlos’, personagem midiático emblemático e consolidado
no imaginário brasileiro. Ele tem a marca de quem consegue falar simples e
profundamente de amor, em um texto ‘rasgado’ de sofrimento e intensidade, ou de
singelezas poéticas, que nem são somente dele. A emoção vem das vivências
tantas, que foram compartilhadas aos sons daqueles versos e da sonoridade de
suas canções. A marca do espetáculo de Natal, veiculado todo ano, talvez tenha
a ver com isso... a ‘força tanta’ de melodias e letras, que atravessaram o
tempo de muitas famílias brasileiras, acompanhando os encontros, namoros e
perdas, os reencontros, casamentos e as novas desilusões, separações, os nascimentos,
crescimentos, renascimentos. Nesse sentido, o espetáculo foi fiel ao Rei
Roberto. É uma homenagem que, na metalinguagem do ‘abobrês recheado’, mistura a
singularidade bem humorada e crítica, das abobrinhas, aos traços marcantes das
canções que (parece!) ele fez pra mim, ops, para nós, para cada um de nós.
O espetáculo Abobrinhas Recheadas é mais uma das produções
da Macarenando Dance Concept, sempre sob a direção de Diego Mac e Gui
Malgarizi, com produção da querida Sandra Santos. Os trabalhos do grupo são
sempre impecáveis e avassaladores. São plurais e sem preconceito de estilos,
desmontando a arrogância da (suposta) arte que não se encontra com o complexo e
diversificado universo que compõe o tecido social, a ambiência
ecossistêmica onde brota a vida e, nesse
sentido, onde brota também a dança, uma das mais belas expressões da vida que pulsa!
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