sábado, 20 de julho de 2013

Leoas, casas e romances....

Malu: Em cada canto da casa de Porto Alegre, pedaços meus, amontados nas lembranças dos objetos e lugares. São cenas e cenas que passam de novo à mente, trazendo passado. Cada coisa ali tem uma história. Muita coisa ali. A casa é muito grande. Na verdade é um apartamento grandalhão, daqueles de prédio antigo. Um prédio antigo em pleno Bom Fim (bairro Bom Fim, pra quem não é de Porto Alegre). O apartamento é tão grande que são dois. Sim, 201 e 202. Comprei  ‘um’ apartamento que são dois, há muitos anos, em outros tempos da vida. Estava grávida de seis meses da Chiara,  minha quarta filha. Lamentava a constatação de que teria que mudar de casa. Na época, era casada e já tinha três filhos. Não cabíamos no outro apartamento, que também era muito bem localizado. Não gosto de me mudar de casa. Eu me apego aos lugares que vivo, faço-os meus. Sempre fui assim, desde a casa da minha avó. Sempre reparei em tudo e me senti me misturando ao lugar. Cada buraco da parede, cada imperfeição, era também minha e assim formava uma poética da minha relação com a ‘casa’. Os enfeites, os adereços, detalhes... coisas de menina. Da Menina Luiza.

Maria Luiza: Isso, coisas de menina. Você fala, com se ainda fosse menina. Não é mais. Lamento informar. Tem que olhar pras suas casas com o olhar prático operacional de quem provê sustento, de quem garante a existência ali e no lugar. É chefe de família, de uma grande família, com quatro filhos adolescentes e um jovem adulto. Não é mais tempo de poetizar, de se embevecer com os detalhes do tempo, do vento e do raio que te parta inteira....

Malu: Nossa, que amargura! Como diria uma nossa conhecida: “Quaaanta grosseria!”. A senhora interrompe um fluxo de pensamento, em que estou refletindo sobre a relação das pessoas com as casas, com o lugar de vida, falando da nossa relação com o ambiente cuidadosamente produzido. Interrompe como lâmina, como sempre.

Maria Luiza: Alguém de nós precisa ter a cabeça no lugar. Se eu deixar por você, seguimos apegadas a tudo o que é passado. Você é uma criatura impossível. Impetuosa e apegada. Não se desfaz de casas, não se desfaz de romances...

Malu: Hum... não muda de assunto. Esse é outro desentendimento nosso...

Maria Luiza: Engano seu. É tudo a mesma coisa. Você constrói as histórias, vive as histórias do mesmo jeito que ajeita os lugares de vida. Constrói os espaços das casas como narrativas de você mesma: uma boneca aqui, uma lembrancinha de viagem, uma gravura, uma esculturinha de Barcelona, panelinhas de cobre do Chile, azulejos de Portugal.. bom, bonecas não vou nem contar... você romantiza tudo. Acredita que tudo é verdade como poética da existência.

Malu: Ah, não. Há poética na existência. Tudo o que eu vivi foi verdade, foi vivido intensamente.

Maria Luiza: Criatura, criatura, veja bem. A verdade é um conceito complexo. Pergunta pra doutora Cardinale. Você faz a verdade intensidade poética. Nem sempre as coisas a tua volta são assim. Elas são assim dentro de você. Tudo imenso. Tudo verdadeiro. Tudo imensamente poético. Aí você se apaixona por porta, parede, sofá, banheira. Você viveu tudo com uma poética construída com o mar de afeto que a caracteriza.

Malu: Não. Não vivi minha vida sozinha. Antes pelo contrário. As melhores histórias são histórias partilhadas. As melhores lembranças, as mais intensas, as mais alegres e mais tristes também são as cenas em que há pessoas importantes da minha vida, ali, junto de mim.

Maria Luiza: ‘Queriida’, você é escritora. Você escreve a parte que lhe interessa das histórias e das lembranças. Você lembra o que mais gostou, as cenas que achou bonitas, as alegres e as tristes. Eu venho tentando te dizer: ‘saudade é sentimento ligado ao passado. O passado não alimenta presente e muito menos futuro’. A regra, então, é: esquece! Você tem que aprender a viver o presente, aprender a viver o que sobrou do passado, o que, de fato, conseguimos construir depois das vivências tantas, em Porto Alegre, Caxias, somando tudo... Às vezes, você esquece momentos importantes. Momentos que significaram rupturas e maltratos. Você esquece alguns momentos, mas não esquece o que deveria esquecer. Fica assim meio que aprisionada na lembrança. Chega a me dar raiva da tal música que diz: “Você é a saudade que eu gosto de ter!”... isso é masoquismo, sandice...

Malu: Lembro tudo. Sei bem o que a senhora lembra, quando diz isso. Uma determinada madrugada, uma madrugada específica. Uma ‘madrugada texto’. Eu sei. Deveria ter ‘lido ali’, deveria ter ido embora, sem falar nada. A relação com a casa. A dificuldade de me sentir em casa. O mal-estar. O desfecho estava claro. Eu sei o que deveria ter feito. Não fiz. Eu respeito meus tempos. Era outro tempo. Outro momento. Não fico me lamuriando pelo que não fiz. Com o tempo, eu aprendi a me ‘des-culpar’, a tirar a culpa pelo que não consegui fazer no passado. Fiz o possível.

Maria Luiza: O possível é pouco, querida doida maluca parceira de vida minha. Temos que fazer o impossível. Você não só se desculpa, você tira a gravidade da cena. Passa por cima. Tanto é que demora a tomar uma decisão, quando ela realmente importa. Sua amorosidade derramada é um descalabro. Uma insensatez.  Em outros casos, é impetuosa e decide rápido demais. Falta reflexão. Realmente, assim não dá pra ser feliz.

Malu: Parabeeeéens! Espetáculo de frases! Uma beleza.  A senhora gosta de frases de impacto. Gosto de refletir, mas realmente esse não é meu ‘dom principal’. Sou a parte de nós que aciona o movimento, que põe o barco em ação, o motor pra trabalhar, nas invencionices, nos movimentos desejantes... vou criando coisas, amorosidades, sim, romances com a vida, romances que escrevo, que vivo... porque isso me põe viva. É o que faço agora... é o que faço sempre. Desse modo, também reinvento as madrugadas. Não fosse assim, não haveria ‘madrugadas de olhos imensos e intensos’, a senhora sabe.... risos...

Maria Luiza:  Tá criatura... sem detalhes...  Melhor frases de impacto que bordões folhetinescos. Você assistiu muita novela na vida. Isso afetou seu cérebro.

Malu: Nosso cérebro, a senhora quer dizer.

Maria Luiza: Não me lembre isso. Sim, nosso cérebro. E eu passo o tempo todo tentando consertar, minimanente. Em vão. Quando estou tentando planejar, pensar sobriamente sobre as possibilidades, vem você ou a menina Luiza e desandam tudo... parecem bêbadas... da vida.

Malu: Oooh... nem tudo está perdido. A senhora está fazendo poesia... risos.

Maria Luiza: Poesia é o escambau! Estou aqui preocupada, pensando em providências necessárias para as nossas casas, de Porto Alegre e Caxias, tanta coisa para organizar envolvendo as crianças, ops.. os filhos, eles não são mais crianças e isso dá ainda mais trabalho, mais todo o planejamento da Universidade e... claro... as novidades da Pazza Comunicazione... os novos projetos...

Malu: Bah.. chega.. já estou cansada... só de pensar nisso.

Maria Luiza: Eu sei. Eu sei... eu também. Acho que vou ver um pouco de novela, pra ver se fico tonta, feito você, e não me preocupo tanto. Até a próxima.


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