Maria Luiza: O que foi criatura? O que você quer agora? Está quase gritando, pra chamar atenção.
Malu: Você não vê? Ela está ali? Atrás do bule. Sentada.
Maria Luiza: Ah... agora a coisa degringolou... sobram
poucas opções. Você enlouqueceu de vez, criatura? Do que está falando? Quem está
sentada atrás do bule? Eu não entendo mais nada do que você fala. A situação
está ficando dramática...
Malu: Arrrhhh.. a senhora não enxerga nada além do nítido, do
visível concreto. Que ódio isso me dá! Não vê, na foto, a leoazinha Luiza? A
foto, está vendo agora? Nessa foto do Centro Holístico Arte e Vida?
Maria Luiza: Senhor, protetor das leoas de uma certa idade e sem
paciência pra gente doida, peço misericórdia. A Malu agora saiu dos trilhos.
Está olhando uma foto e vendo a si mesma pequena, atrás de um bule, em uma
imagem que, juro, não há sequer uma menina, que dirá a derretida da leoazinha
Luiza... assim fica difícil...
Malu: Mas eu não to acreditando... falta mesmo muita
sensibilidade na senhora. Seu senso prático exagerado, sua racionalidade
exacerbada, sua lógica preconfigurada de vetor prático operacional vai mantê-la
assim, pra o resto da vida, enxergando o que todo mundo enxerga, apenas o que
todo mundo enxerga... isso é muito pouco.
Maria Luiza: Você quer dizer... enxergar o que existe de
fato, apenas o que há para ser visto, sem delírios imaginativos.
Malu: Não são delírios. A senhora não entende que uma imagem
é um texto, uma narrativa, maior, bem maior do que os traços visuais, o
composto de características visuais que a compõem. Se fosse só pra ver isso... a
vida não faria sentido. Não teria a emoção que tem!
Maria Luiza: Hum.. sei... emoção e loucura, pra você, agora
são a mesma coisa?
Malu: Não. Veja bem, olha bem pra foto, mas olha bem mesmo!
Firme. Sente. Não vê a menina Luiza atrás do bule, sentada, rindo?
Maria Luiza: Olha, eu uso óculos. Já olhei essa foto muitas
vezes, desde que você começou a delirar...
Malu: Não é delírio. A imagem tem a Luiza pequena. Só que a
senhora, assim como a maioria das pessoas não vai ver. Ela está nos detalhes,
no substrato de afeto visual que se expressa ali... na conexão narrativa com o
Coqueirão, fazenda onde a Luiza viveu e onde aprendeu a brincar, remexendo o
chão, achando graça em tudo, nos gravetos, nas plantas, nos pedaços de
brinquedos, flores do campo, no cheiro das coisas, no barulho do ‘silêncio’, os
sussurros de seres invisíveis, esses mesmos que a senhora nunca viu e nunca vai
ver...
Maria Luiza: Nunca vi seres invisíveis... me ocupo com coisas
palpáveis, lógicas. O que existe já é muito para me ocupar com imaginação.
Menina Luiza: Mas tudo isso que ela diz existiu, sim. Não é imaginação.
Era tudo lindo, muito simples e muito lindo. Eu sonhava muito, brincava com
tudo. Brincava principalmente em cima do pé de jabuticaba. Dormia e acordava. A
árvore era tão grande que as galhas eram os cômodos da casa... lembro do meu
avô, da risada dele, as bitelas, as grandes jabuticabas, como ele chamava.
Depois ele me deu um pé de jabuticaba em Guarantã... maravilhoso, a árvore da
minha vida.
Maria Luiza: Ah... tá... reminiscências de infância. Que
lindo! Agora a Malu foi desencavar essa guria choramingas, daqui a pouco ela tá
aos prantos, lembrando, lembrando....
Malu: Uff.. a senhora é impossível. Eu não desencavei a
Luiza. Ela estava lá na foto, na poética..
Maria Luiza: Tava demorando, a palavra... a poética...se não
falasse a poética não seria você...pra mim, já deu por hoje. Estou satisfeita...
valeu mesmo. Fotos, delírios e poética... claro.. como eu não poderia
imaginar.. a poética da foto com a poética da Luiza... uff...