terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Vestido de flores miúdas... e a Madeleine!




Tecido macio, fundo cor de vinho, com flores miúdas, cujos tons variam entre o amarelo queimado e o marrom. Os detalhes das flores são da mesma cor vinho da maior parte do tecido. Há também algumas figuras geométricas, de outras cores, predominando o azul e o verde. Essas mais parecem aquelas imagens, que surgem quando fechamos os olhos com as mãos e ficamos aguardando ... bem, eu sempre fazia isso, quando criança. Agora não tenho feito, porque quase não tenho tempo. O atropelo cotidiano me rouba de práticas prosaicas, como essa e, também, o gosto de usar um vestido de flores miúdas que tenho já há algum tempo. Comprei em Recife, sabe Deus em que ano... era outro tempo na minha vida. Agora gosto mais do vestido. O tecido parece que se acomoda no meu corpo... ‘eles’ se entendem. Meu corpo gosta de quem o conhece. Sempre foi assim.

As flores são imagens que me acompanham, desde sempre. Sou filha de florista, minha família teve uma fábrica de flores no interior de São Paulo, como eu contei em outro texto. As margaridas brancas seguem minha história e até dão nome a esse blog. São imagens singelas... ternas. Outras flores são insinuantes. Têm ternura e sensualidade, ao mesmo tempo. Até hoje, meus arroubos de desenhista se resumem a desenhar flores. Quando vou dar um exemplo, em sala de aula, para falar da construção da significação... vira e mexe acabo desenhando... flores. As flores também expressam bem minha condição feminina. Fêmea e menina.

Às vezes me incomoda a fragilidade, essa ternura e amorosidade exageradas, jeito de menina, mulherzinha... mas, logo depois, percebo que é uma incomodação sem futuro. Não há como mudar a matriz da criatura, a essência da ‘coisa’, sendo que, no caso, a ‘coisa’, sou eu, a coisa Malu. Pra sobreviver e não viver me machucando... dá pra brincar um pouco, apelar para o humor e deixar vir à tona alguns personagens que brotam em mim, como exercício prático de sobrevivência. Foi assim que surgiu a Madeleine.

Eu ainda sei pouco sobre ela, porque seu traço mais forte é a paranóia. Madeleine é uma criatura que passa o tempo todo imaginando conspirações internacionais contra ela. Tanto que não me disse ainda o seu sobrenome e sua cidade de origem. Há coisas que ela não conta nem pra mim mesma. De certo, porque imagina que eu sou a grande conspiradora contra ela, porque a criei. Pelo sotaque, já se sabe que é francesa de nascença, mas vive há algum tempo no Brasil. Olhar arregalado para tudo e todos e sempre pronta a desmascarar um... “plaaaanu”... “uma conspirración internacional”...enfim.. só vendo mesmo.

Certamente, ela passou o dia indignada com o tal vestido de flores miúdas. Deve estar pensando que é um plano meu, para que ela seja vista assim, pelas pessoas, com um vestido envelhecido . Certamente me diria que isso faz parte de uma vontade interna de que ninguém a queira ver. Não... o vestido é bonito, Madeleine. Eu responderia.. mas ela... francesa... acostumada à moda de Paris, certamente se incomodaria com esse singelo vestido de flores miúdas comprado em Recife. Eu gosto. Ele ‘me tem’ hoje... bem confortável, à vontade. Vestido longo, tecido macio.

Eu me diverti muito com a Madeleine esse ano. Seu surgimento ocorreu dentro de um ônibus em Porto Alegre, na volta de uma visita à Casa de Cultura Mário Quintana, quando fui assistir a uma apresentação de dança da minha filha mais velha, a Giulia. Lindo espetáculo. Eu voltei emocionada. Estava com o Pietro, meu segundo filho. Era de noite. Chegamos em frente ao mercado e estava estacionado um ônibus, da linha Santana, com o motor ligado. Bem.. a lógica, quando você chega à parada e tem um ônibus com o motor ligado o que você pensa? Que ele vai sair em seguida. Pois é. Este foi o problema. Entramos e depois de um tempo, a Madeleine apareceu indignada, dizendo que era um ‘plano’ do motorista e do cobrador... para sequestrar uma pobre mãe, com seu filho, na noite de Porto Alegre. Na sua loucura indignada, na sua verborragia despejava uma linguagem afrancesada, marcada pela indignação, por já estar há mais de 10 minutos presa dentro do ônibus. Ela dizia insistentemente ao filho que o motorista e o cobrador faziam parte de uma conspiração internacional contra ela... Daí não parou mais, Madeleine foi aparecendo e brincando com situações do cotidiano que tornam a vida ao mesmo tempo ridícula e mínima...mas que, se não forem tratadas com humor, podem levar a pessoa à irritação, ao estresse.

Um momento marcante foi o encontro de Madeleine e um quero-quero (o pássaro). Eu tinha terminado de dar uma aula no CETEL, um dos prédios da UCS e tinha que ir até o Bloco M, para outra aula. Na ‘subida’, Madeleine se depara com o tal pássaro, ali parado, meio em dúvida, se atravessava ou não a rua. Paramos, eu e ela – que só pra esclarecimento do leitor, somos quase a mesma pessoa... ao menos vivemos no mesmo corpo... puxa... esse suposto esclarecimento talvez o esteja confundindo.. não importa.. não se preocupe... siga o texto que a vida também é assim.. confusa. Enfim, diante do quero-quero (hum, o nome da criatura é sugestivo), Madeleine e eu paralisamos. Eu trazia a lembrança (trágica) da infância de um ganso que me atacou e bicou... bem, não importa onde. Quer dizer, coragem mesmo para enfrentar a tal ave... eu não tinha. Aí...ele, o quero-quero, em dúvida.. ia pro meio da rua e voltava pra calçada.... Palhaçada...Madeleine começa a disparar um discurso afrancesado pro tal pássaro.. na sua linha de que ele também fazia parte de uma conspiração internacional de “quero-queros”, que queriam acabar com a reputação dela... o que os alunos iriam pensar se a vissem com medo de um pássaro e tal... esbravejou que se negava a dar um passo sequer enquanto ele não saísse da frente...O pássaro, lógico, ficou insensível ao desespero da Madeleine – e meu, que tinha um grupo de alunos me esperando e também não queria que alguém me visse falando sozinha. Afinal, o que pensaria????

Bem... o impasse se resolveu com a Madeleine recuando e resolvendo atravessar a rua, aos brados, solta na sua ‘reclamonice’ tradicional. O encontro emblemático com o ‘quero-quero’ acionou a Madeleine. Singela cena e hilária, pra quem viveu. Patética, ao mesmo tempo, se considerarmos a poética. Por que será que o encontro com um ‘quero-quero’, para Madeleine era tão ameaçador....hum....ela vai se debater de raiva...agora. Vamos aguardar ...

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