terça-feira, 6 de julho de 2010

AS SENHORAS E A MENINA QUE AMA(VA) A ESCRITA

Eu tinha acordado de noite e levantei cambaleante, como de praxe, sem saber, ao certo em que cama estava dormindo. Tenho passado os últimos anos da minha vida, vagueando de cama em cama ou dividindo a minha própria cama, com seres diversos. São seres pequeninos. Ao todo, são quatro. Dois meninos e duas meninas. Meus filhos. Eles parecem fazer um revezamento, na peregrinação noturna, em busca do colo da Mãe Malu. Sempre encontram. “Tive um pesadelo!”, me diz um com um beiço, de filho choramingando. “Estou com medo”, fala outro... “Mãe, posso ficar aqui só hoje?”, “Bruxas existem? Tem uma que quer me pegar...”. “Eu fiz xixi na cama...”.

São tantas frases que balbuciam nesses encontros noturnos, que eu já me acostumei com o ‘resultado’ do discurso. Aos poucos, vão se aconchegando na minha cama ou me pedem para ir para a deles, ou, ainda, me convidam para o sofá... Em tese, não devia, eu sei.. na prática, aceito sempre o convite e os acolho no abraço que, eu sei, não vai durar muito tempo. Um dia, eles vão embora. Espero que levem, na lembrança, o calor dos afagos e a certeza do afeto que tenho por eles.

Naquela noite, em seguida, dei-me conta que tinha adormecido no sofá, tentando fazer o Giuseppe, meu terceiro filho, dormir, depois de assistir ao Tom e Jerry, nosso desenho preferido. Acho que dormi antes dele, como não era raro acontecer. Então, ao acordar, levantei sob o efeito ‘boneco de mola’, de supetão e, talvez por isso, saí do sofá cambaleando. Fui para a Pazza e estranhei o fato de que as luzes, que eu havia deixado apagadas, estavam acesas. Estranho. Caminhei e, ao chegar na porta, avistei uma senhora sentada na minha cadeira, com o computador ligado. Esfreguei os olhos.... “Meu Deus, de onde saiu essa velha?”, pensei. Minha curiosidade infantil, associada ao meu traço de jornalista, me fez não julgar... resolvi reconhecer essa senhora que eu sentia como uma antiga conhecida.

Ela tinha os cabelos brancos brancos, puxados e presos num tímido ‘rabo-de-cavalo’. Sorria pra mim. Havia uma espécie de luz em sua testa. Os braços estavam um pouco à mostra, ela usava roupas antigas, de um tecido fino, como se fosse seda chinesa ou os delicados tecidos dos lenços italianos... curioso... “Quem é essa mulher, sentada no meu lugar?”. Estranhamente, também, isto não me incomodou. Normalmente, fico furiosa, quando alguém usa meu computador, quando mexe em minhas coisas, quando se aventuram, sem que eu saiba e concorde, em meus territórios existenciais. Naquela madrugada, não. Estava curiosa. Apenas isso.

Resolvi não perguntar diretamente quem era ela. Parecia quase uma heresia. Ela estava tão à vontade. Solta mesmo. Perguntei, então, o que ela estava fazendo? A senhora de cabelos brancos disse que estava se inteirando dos recursos da internet para se expressar melhor, para se aproximar das pessoas... Ai, estremeci.. como alguém com tanta idade pode pretender embrenhar-se na internet, para usar seus recursos. “Mas a senhora sabe lidar com a internet?”, perguntei. Ela sorriu e disse: “Eu sei, você deve estar estranhando. Eu sou muito velha, eu sei. Na verdade, sou muito mais velha do que você pensa. Tenho em mim grande parte da história da humanidade. Das cavernas da Mesopotâmia, entre os rios Tigre e Eufrates, passando pelo Egito, a China... a Fenícia...a Grécia.. ah..os gregos... Posso dizer que eles deram um outro sentido pra minha existência..”.

Eu, então, fiquei confusa. Certo, a senhora parecia ter bastante idade... parecia ser bem velha, embora demonstrasse extremo vigor... mas daí a ter conhecido os gregos... Ri sozinha.. Ela deve estar dizendo no sentido figurado... ou eu estou alucinando. A senhora continuou: “Eu já vivi muito. Ajudei a contar muitas histórias, pessoais e da humanidade. Nem me lembro de todas, mas as inscrevi em suportes diversos, da terracota, ao pergaminho, dos exercícios iniciais da prensa de Gutenberg a... agora.. os meandros dessa grande trama internacional.. a internet”.
Eu estava boquiaberta. Como poderia, aquela senhora, de jeito tão simples, vestimentas quase singelas... ter vivido tanta coisa. Afinal, quem era essa conhecida que eu, talvez por estar sonada, não reconhecia imediatamente. Ela seguia: “Eu contribui para acertos e desacertos. Estive em palácios e em becos onde se abrigavam foras-da-lei. Alguns aproveitaram a minha presença, para inscrever verdades, que afrontavam o poder. O mesmo poder que, em outras situações, me chamara para tecer inscrições que traziam propostas de controle... Me arrependo.. Eu também me prestei para trabalhos escusos... Não é essa minha razão de viver”.

Não me agüentava mais.. a cada palavra.. a cada movimentação da senhora, a cada gesto, eu me encantava mais e aumentava o sentimento que tinha sido desencadeado em mim... desde o momento que a vira.. ali, sozinha, no meu escritório... “Mas o que a senhora faz aqui, no meu escritório?”, não resisti. Ela, então, ficou séria e respondeu: “Há muito tempo estou aqui. Há muito que te acompanho. É que nunca tinha aparecido assim, em um corpo... mas você me conhece, bastante bem. Pelo menos, é uma entusiasta, cada vez que fala a meu respeito... parece ser empolgada com o que eu posso ajudar a construir.” Fiquei estarrecida. Não gosto de não me lembrar das pessoas. Em geral, não consigo resgatar bem a associação entre o nome e a imagem, mas esquecer, assim. Não, na prática, como já disse, eu tinha por ela uma sensação de reconhecimento. Não conseguia era juntar a imagem com a pessoa, com a ‘persona’... “Mas, que negócio é esse de não ter vindo em um corpo?”, fiquei matutando.

“Eu apareci para você, quando você era ainda muito criança. Foi teu irmão quem nos apresentou, aquele que agora é doutor em Educação. Ele também diz me apreciar... estamos sempre juntos. Você me encontrou em textos vários, primeiro em contos de princesas e príncipes, depois nos de Monteiro Lobato, José Mauro de Vasconcelos.. e assim, seguimos sempre juntas. Sempre que você queria me encontrar, fechava os olhos e fazia de conta que estava tirando uma grande pedra de cima de um buraco.. não propriamente um buraco, mas uma espécie de caverna. Era de onde eu sempre saía e ia passando para o papel.. livre, leve...feliz, por te reencontrar.. a menina que amava a escrita.”

Eu te acompanhei nas primeiras séries e me envaidecia porque você sempre buscava a minha companhia. Sempre estávamos juntas. Era como se eu fosse a sua melhor amiga. E melhor amiga, naquela idade é algo de grande valor! Seguimos sempre juntas. Uma vez, você recebeu um papel, com um texto de um egípcio, falando um pouco que a nossa história é mais antiga que esta tua vida aqui.. falando que há várias encarnações você vem trabalhando comigo”... Neste ponto, eu sentia algo estranho, era como se toda a minha vida (e não só essa) estivesse passando diante de mim e sendo ressignificada. Estava sendo sentida em estado ampliado, como se fosse a fala da senhora acionasse uma lente antiga e potente, através da qual eu me via, sempre às voltas com os livros, sempre pronta a escrever, inscrever-me. Eu, então, já sabia de quem se tratava... ao longo da minha vida, a escrita, essa velha senhora, de cabelos brancos, me ensinara a viver, me ajudara a me aventurar em relações, bilhetes amorosos, inscrições de ficção, pensamentos picados.. depois, textos a pedido, textos com relatos de vida, de acontecimentos.. textos das pesquisas. Nossa, tanta coisa passou na minha cabeça... um mundo.

Olhei mais uma vez para a senhora e lembrei-me das minhas duas avós. A avó com quem morei grande durante a infância e adolescência, e a nonna, uma italiana brava, mas plena e intensa, respeitosa e, ao mesmo tempo, cheia de suas manias. A primeira era analfabeta. Lembro que fiquei muito triste, quando fiquei sabendo disso e tentei ensiná-la um pouco. Ela já era bastante velha. Preferiu ficar na escrita do próprio nome, aprendizado do qual tinha grande orgulho. Saber desenhar as letras do próprio nome.. quanta diferença fazia para ela. Minha avó Zefa (como era chamada) era o exemplo de dedicação, a quem ela amava. Entrega plena, total, o que implicava, também, em uma demanda do mesmo nível.

A outra avó, a nonna, sabia escrever. Tinha vindo da Itália contra vontade, atrás do marido que viera 10 anos antes. Esta tinha um jeito aparentemente rígido, duro. Aprendi, com ela, no entanto, que há afeto também neste tipo de pessoa, e afeto imenso. Ela não se desmontava em declarações de amor, mas trazia a segurança do afeto, em mínimos gestos, no olhar, no riso, no convite para partilhar a sobremesa, que ela tinha guardado para quando um dos netos a visitasse. Preciosidades alimentícias. Sabores múltiplos diversos, de produções caseiras com receitas que ela não publicava... segredos de família (algumas ela me passou, em confidência). Naquele momento, então, percebi que a imagem da senhora era uma mistura das minhas duas avós – a avó e a nonna. Nesse encontro com a escrita, ela escolheu fundir duas pessoas muito importantes para mim, para constituir seu corpo visível.

Fiquei pensando que a escrita é, sim, uma mistura destes dois jeitos. Uma escrita que não sabe escrever, mas que sempre me deu tanto texto, tantas histórias contadas, cantadas, nas falas do cotidiano, que me ensinou a pronunciar palavras que compuseram meus traços de sujeito falante. Que reclamava das madrugadas em que eu passava, com os textos, mas, no outro dia, contava para os vizinhos que “A Luiza passou a noite lendo, essa menina”, orgulhosa. Uma escrita terna e dedicada. A outra, mais severa, mais exigente, vivia fazendo recomendações. “Colocava-se, às vezes, diante de mim, a me ensinar como se deve caminhar. Como uma italiana deve caminhar. E mais: qual a diferença entre o caminhar de uma italiana do sul, de Napoli, e de uma italiana do norte, mais elegante.”. Ela, do seu jeito, também me ensinou muita coisa. Eu não me prendia, no entanto, às suas exigências. Quando não concordava com alguma coisa, mas entendia que era importante para ela, dizia apenas: “sim, nonna, sim.. vou tentar”, e seguia vivendo, sem afrontá-la. Tentava conviver, porque a amava e amo ainda hoje.

Duas senhoras em uma: a imensidão de afetos, sem palavras arrumadas, ao lado do mundo das regras de convivência, de linguagem. Eu aprendi a conviver com as duas e a viver intensamente cada encontro... talvez seja isso que eu esteja tentando partilhar agora... busca da convivência pacífica com Dona Josefa Gonçalves e com a italiana Anna Caronti, ambas inscritas e vivas em mim, embora já tenham falecido, como corpo de um outro eu.

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